terça-feira, 8 de junho de 2010

O Poema


Este poema
É oco,
Não tem beira,
É vôo
Obliquo de
Pássaro.
Bebo dele que,
Como eu, é uma
Fisgada.

Entro pelos
Canos deste
Poema, desço
Por suas escadas
— Inocentes.
Escuto
Seus gritos:
O oco —
É vivo,
Vindima,
Mãos socadas
Nos bolsos.

Confesso de
Antemão este
Poema e a ele
Faço companhia.
Cego, caio
Por seus
Caminhos.
Não tomo jeito:
Ando de rojo
A fim de suas
Veredas.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Alucinação

tentáculos,
reses diabos,
pedras e calos —
muitos.
gosto de céus
é ruína.
sapatos pretos,
uns beiços grandes,
nossa mãe sarará.
preto.

arara em
hambúrguer:
um macunaíma
feio de dentão:
eu — preto e branco.
atravesso
aquele trem
que vem
rápido e
me causa
vertigem.

ela é doida,
a clarice,
cortina que
balança apesar
da luz do
computador.
palra. é garça.
graça de graça,
é mais pirraça,
dizia vovó.
mas vovó era
uma mulher
que fazia
bonecas de pano.

lembro...
tinha enchente
e os patos
voejavam,
o cachorro
reclamava,
grandalhão.
meu pai sempre
se cortava
fazendo barba,
acho.

frio é corte,
apesar duma
vassoura que
desnuda chão.
árvore grande
é aquela que eu
não conheço
mais. mas ela
é nua: é junho
e bebo café
no terraço.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Manhã

Pela culatra
Do dia curto
Os
Parafusos caíam
Frios sobre
Um sol de
Nove horas —
Lentamente.

A víscera
Da manhã
Dobrava
As sombras
Dos espelhos
Nus que
Acordavam
Em branco.

Preguiça —
Olhos que
Se abriam
Pequenos
Sobre o fixo
Da terra —
Acordando.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Eu, por Janaína.



Este esboço (um retrato de mim) foi feito por Janaína Santos,
a quem tenho muito apreço, quando dela
me aproximei na faculdade de letras e pude, então,
perceber o quanto é uma figura especial.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Entre estranhos (primeira parte)

(Quadro "Operários" - Tarsila do Amaral)

Frância parou um pouco para respirar. Sôfrega e um pouco irritada parecia não compreender que o apartamento conseguinte ao seu estava sendo ocupado. Saiu à porta inúmeras vezes, procurando ver seu novo vizinho, o que fora mais esperto que Ângela. Depois do almoço, sem sequer mudar de roupas, ligaria para a amiga a modo de dizer-lhe que já era tarde, que ela procurasse outro lugar nos anúncios dos jornais. Havia lugares baratos e cômodos ao norte dali. Por mais uma vez, ladeada pela curiosidade, abriu a porta e, como um lobo esperto, ziguezagueou os olhos sobre o cinza-pálido dos corredores à luz meã, onde portas trancavam desconhecidos. Ouvindo passos vindos de um andar abaixo, fechou rapidamente a porta sob o desespero de seu coração que batia em qualquer veemência. Ela suava um pouco porque descobriu que sua atitude fora ridícula a uma mulher que possuía mais de cinqüenta anos. Recompôs-se, encostou-se à porta e olhou para o seu apartamento sob a desordem de uma tristonha manhã de domingo. Eu me tergiverso, pensou engranzando a mão pelos cabelos. De inopino se reergueu e atravessou a sala para chagar à cozinha. Lá se sentou e comeu. A carne estava um pouco dura, porque que sua empregada nunca sabia fazer carne macia. Frância pensava que comer aquela carne morna e dura era como morder um cadáver.

Depois do almoço ligaria, como havia desejado antes, ligaria para Ângela? Talvez se Ângela fosse pega de surpresa aprenderia a lição com certa intensidade. Frância decidiu então não ligar para Ângela para que ela soubesse por conta própria sobre a ocupação repentina do apartamento.

Não ligaria, então.

Levantou-se orgulhosa e fitou a cozinha cingida por uma claridade débil. Uma cozinha que parecia um rosto disforme e esbranquiçado pelo pó-de-arroz. Frância achou essa a comparação engraçada, e, vendo um pombo que rulhava sobre um prédio menor, simulou um sorriso de meia boca. Agora, a uma distância existente apenas pelo fogão que a empurrava contra a janela, ela olhava o império silencioso: a cidade sem habitantes. Mas por que colocaram o fogão logo defronte à janela? Tudo se desguarne-cia em mobília. Tudo no apartamento tinha um rubor de mobília que sufocava. Eram sombras e umidades.

Foi, então, que teve uma súbita e perigosa idéia: bateria à porta do vizinho novo. Mas à guisa de quê? Agiria por impulso e erraria, seria desfocada pela vergonha? Há muito não conversava com ninguém. Fosse como fosse, essa seria a sua maior desculpa, cuja veracidade a livraria de qualquer castigo. Erguida, com um vestido de pequenas flores tão pálidas que nem apareciam, ela acendeu um cigarro para preludiar um futuro. Ou seria para adiá-lo? Pensar no que faria era a única forma de despistar a tristeza daquele domingo que lhe dava um arrepio por dentro quando abria um pouco a boca e o ar entrava. Seria, então, criar um ato que fugisse do cotidiano? Estava sendo um domingo de um azul desmaiado e quase europeu. Frância se requintava duma suposta alegria, pois, em pensamento, fumava cigarros em Liverpool depois de comer boa carne. Seu corpo, tão magro e seco, colado a um vestido velho e descorado, recebia os ares do que nunca possuíra. As coisas se mortificavam quietas, pálidas, existiam num tênue frescor. Ela vivia uma graça tão lépida que passaria após o cigarro. Movimentou um pouco as pernas, viu as contas em cima da mesa. As pagaria quando pudesse. Terminou o cigarro e, inerte, teve uma sensa-ção passageira de angústia. Fechou lentamente os olhos e, suspendendo o sobrolho, afastou qualquer espécie de preocupação que a pudesse deixar atormentada. Levantou-se enfim. Cumpriria o que decididamente pensa-ra? Seria talvez ir longe demais. Certificou-se da hora. Era pouco mais de onze da manhã. Almoçava cedo, não? Estava toda longa como uma árvore, uma grande cumeeira. Assustou-se. Cumeeira?!, disse Frância para si como que questionado o filho que nunca teve. Ela poderia ter tido um filho se quisesse; não teve por vontade própria, pensava muito orgulhosa, levantando o rosto sem profundas rugas. E sua imagem era a de uma mulher madura, de rosto rijo como talho de madeira. Parada, defronte aos móveis escuros da sala, Frância tomava pose altiva de dona, o que soava antiquado demais. E finalmente, tomada pela letargia, estava diante dum corredor. Não, não o corredor do edifício; o corredor que caía no banheiro de seu próprio apartamento.




Gil Fedrosa morava ao lado de Frância já fazia um mês — desde que se mudara de seu antigo apartamento — e nunca a encontrou para toma-rem café juntas. Eram, de certo modo, desconhecidas. Somente algumas esporádicas vezes, nenhuma sobre grande apreciação, Gil pôde ver Frância passando sorrateiramente, entrando e batendo a porta de seu apartamento, enquanto ela saía para fazer compras ou ir ao balé.

...Acima de tudo, fazia uma manhã especial e Gil olhava pela janela. Ela gostava de olhar o tempo. Não que fosse um tempo ideal, mas especial, ela acreditava. E parada, de cotovelos encostados ao vão, as mãos apoiando o queixo tão anguloso, ela, enfim, pôde se lembrar do sonho que tivera. Pensava que talvez ninguém a acreditasse se acaso contasse esse sonho. A quem contar? Então, pegando a correspondência que recebera mais cedo, sentiu uma alegria. Enfim, mostraria seu trabalho em São Paulo. Gil estava mesmo orgulhosa quando ao reler a correspondência, assinada de modo imperceptível, o motor estridente dum auto a atrapalhou. Ela levantou os olhos. Queria poder sair nesta manhã e tomar um café em algum lugar. Talvez na casa de Frância? Certo é que ela nem sabia ainda que Frância se chamava Frância. Mas lhe doía a inexistência de uma comunicação. Desde que se mudou não entrou em contato com ninguém, e isso lhe parecia grave demais a uma artista. Não, não podia ser. Ao longe, no final da rua deserta e cinza, parecia surgir um ponto negro. Esse ponto foi aumentando, aumentando, quando Gil pôde ver que não se tratava dum ponto, mas de dois, que se chocavam. E os pontos tomaram forma humana e conversavam intensamente, enquanto a mão de um tocava o ombro do outro. Ela, então, saiu da janela, e se virando, viu a ausência duma família naquele apartamento de cômodos largos. Era realmente um apartamento grande que ela ainda não tomara posse completamente. Essas paredes são minhas, ela pensava às vezes, em transe. Em especial, um cômodo inacabado chamou por Gil; ela caminhou a esse chamado. Luzes pálidas desciam e caíam aqui e acolá. Em outros pontos, uma sombra ou um azul imperfeito como o enxoval dum bebê, dançavam numa eloqüência. Do cômodo, o que exilava a voz, veio cores que batiam graves na parede do corredor. Seria a luz?, pensava, enquanto andava descofiadíssima. Seus passos se adiantavam numa velocidade fictícia parecida a que, de certo modo, a movimentava no sonho que tivera, balançando-a um pouco, estalando-a a centímetros do chão. Sem perceber, estava Gil à porta do cômodo oscilando entre entrar e não entrar. Por ser impossível não entrar, entrou.

Já dentro, olhando dois de seus quadros na parede — um de traços fortes demais e outro a um lilás quase enfermo — ela se deu conta que estava no ateliê que improvisou dentro de seu apartamento. As cores a torturavam e depois, alheias e tristes, a ninavam; ela era — assustou-se a este pensamento —: ela era uma defunta em meio aos vivos. Arredou o corpo, deu uma volta que parecia uma antecipação e sem esperar, cravou os olhos no quadro inacabado sobre o tripé. O quadro, em contraste com os demais e com a própria dona, se diferenciava: era um morto-vivo. Um meio-termo. Enfim livre, ela se aproximou do quadro. Viu um homem que caminhava num deserto. Ao lado dele uma bolsa caída. O homem, que Gil chamou de A., era magro demais e tinha a pele um tanto parda de sol. A. ainda não tinha rosto. Ao passo disso, um borrão branco pousara sobre sua face, tampando, assim, sua personalidade que Gil não podia imaginar. Como terminar esse quadro se eu não conheço o homem? Ele devia ter boca seca, lábios secos, e coração seco, uma necrose talvez. Então, deu uma olhadela nos quadros dispostos no cômodo, e percebeu que pouco sabia sobre todos eles. Ela não os criara; Gil estava sendo a passagem entre alguém que ela não conhecia e o mundo. Assustada, sentou-se. De inopino apanhou o pincel e se adiantou ao quadro, borrando-o todo de negro. O homem seco do deserto havia desaparecido..., mas sua bolsa continuava murcha sobre o chão. Passou pela cabeça de Gil erguer a mão e num jorro de tinta apagar a bolsa de A., mas pensou que talvez um dia, quando tivesse um rosto, ele quisesse voltar e apanhar seus pertences. A. estava coberto por um negror de morte, mas seu rosto se multiplicava. Ela deu com rosto dele noutro quadro: um rosto de duros ossos e uma cabeça muito grande. Gil se desviou, pôs a mão na cintura e saiu.

Decididamente ela iria ao apartamento da vizinha. Decididamente. E lá batendo e ao vê-la abrindo a porta diria: — Você pode me dar um minuto? A outra responderia: — Sim, é claro. Entre por favor. — Que não seja incômodo demais... Como está quente lá fora, não? — É verdade, mas aceita um pouco de café? — Sim, será um prazer. A seqüência de como seria o suposto entrosamento necessário com a vizinha foi interrompida pelo chamar do telefone. Gil correu até a sala e atendeu:

— Alô. Sim, sim é claro. Você vem? Naturalmente... Minhas coisas já estarão arrumadas, Jorge. Sim, sim. Como? Poderá ser às nove horas da próxima segunda-feira. Está perfeito, então. Tchau.

Gil pôs o telefone no gancho, estirando-se um pouco e elevando os braços. Uf!, suspirou. Ainda não tinha feito os afazeres necessários para que pudesse ir à São Paulo na semana que viria. Precisava organizar uma lista do que levar, o que fazer, como se portar, talvez. Ergueu-se rapidamente para apanhar um lápis, mas oscilando um pouco, as pernas indo e vindo, ela parou. É que ela tinha bastante tempo para fazer isso; precisava agora organizar coisas mais urgentes. O quê? Haveria alguma coisa, alguma coisa que ela agora não percebia, mas que precisava duma organização? E, olhando o apartamento de cima a baixo, percebeu que a empregada ainda não viera. Encarou o relógio, faltava pouco para as dez. Afinal, o que aconteceu? Sorriu. Era um alívio estar sozinha e não ver o rosto preto da empregada. Aquele vestido escuro a deixava cada vez mais ofuscada e distorcida. Vez por vez, ela sentia estar sendo vigiada por aquela mulher que ela nem conhecia bem. Mas quando finalmente, sob o impulso do coração que batia assustado ela, um pouco apavorada, se voltava, a mulher estava sorvida pelos afazeres, lavando paredes, purificando com baldes e baldes de água. A verdade, é que impossível era o fato de elas nunca terem se falado. A empregada cumpria tudo num silêncio absoluto de lua.

Foi até à mesinha e pegou para si uma dose de uísque. Sentou-se, fumou um cigarro. Frida Neves, a escritora, poderia chegar a qualquer momento. Ela mal se esquivou do último pensamento quando bateram à porta. Era Frida e estava bonita como sempre. Aqueles cabelos ruivos a deixavam tão quente que, inteira de calor, pôde espantar o frescor de Gil. Era uma luminescência. Frida possuía uma languidez quase impossível.

— Frida, querida, entre — disse Gil se antecipando para beijá-la. — Estava mesmo pensando o quanto me sinto sozinha e você chegou... Nós artistas não podemos ficar tão sós, Frida.

Ela estava louca?

— Você tem razão...

Ah, como era fascinante aquela manhã preparada para a arte! E como respirar o ar era aceitar um frescor necessário às duas. Frida sorria um pouco, porque estava inspiradíssima. Gil elevava o copo de uísque e o servia, agilmente, à amiga. Elas, enfim, se reconheciam agora: as artistas, uma diante da outra. É claro, Frida Neves um pouco de lado, porque assim ficava mais graciosa, da mesma forma que também assim o ficava quando, se movendo a alguma distância, ela punha uma das mãos na coxa para se guiar melhor. Gil ofereceu-lhe um cigarro e ela respondeu meneando a cabeça:

— Obrigada.

O ateliê estava pronto? Frida queria panos escarlates envoltos ao corpo, mas seria melhor que ela se deixasse pintar apenas de rosto, era a sua graça.

— Vamos? — disse Gil.

Atravessar aquele apartamento era para Frida como atravessar o Mar Vermelho. Ela erguia demais as sobrancelhas, sem conhecer o espaço. Tratava-se de um apartamento bem limpo, de cômodos que se desencadeavam noutros, e outros que caíam noutros. Mas isso não era natural? Frida pensava que não. Tudo ali tinha a graça dum véu róseo, o que a deixava encantada e um pouco bêbada. Só depois percebera que o uísque tinha sido insuficiente para deixá-la bamba. O que a deixava assim eram os olhos de Gil? Seus calcanhares, um pouco elevados, nunca tocavam o chão. Ela tentava compreender.

Rápido foi o olhar de Gil sobre o ateliê. Ele estava arrumado com caracóis de panos escarlates a um canto. E lá estava, cravado há séculos, o tripé abraçando a tela virgem. Gil guiou Frida até ao assento.


— Assim não..., aconselhou trazendo Frida mais para a direita.

E completou antes que Frida falasse:

— Piiss... Piiss... Fique quieta.

A tela virgem ganhou o primeiro traço, e ele percorreu um longo caminho encurvado. Este traço era tão forte que Gil pensou ter agido de modo muito categórico. Mas não, a expressão exata era esta: a agudez que representasse a silhueta de Frida, cuja uma das mãos desmaiada estava sobre o sofá e a outra, engendrada pelo braço que se encostava à estofa, segurava levemente o queixo. Qualquer felicidade havia nesse rosto, mas não uma felicidade intensa, uma felicidade contínua. Frida era como a primavera. E seus olhos eram grandes espelhos nus. Outro traço duro numa quebra necessária. E outro, e outro. E depois, elevando o braço e se pondo a um passo do tripé, Gil cobriu uma outra parte do quadro com qualquer cor indefinível. Agora existiam duas Fridas, ou uma apenas que se multiplicara? Gil era o estereótipo e a evidência. Silenciosa, apenas a mão ainda elevada como se ela fosse uma estátua, ela viu Frida tão serena que teve inveja. Já a Frida, tudo o mais que pudesse sentir não passava de amor. Ela amava Gil.

— Que há? — perguntou Frida.
— Já terminei — respondeu.

Frida se ergueu e viu o quadro.

— Oh! — e esse “oh!” tinha sido de espanto.

Mas não era isso o que Frida queria dizer. Ela abraçou e apertou sua cabeça contra os seios de Gil, sem coragem para perguntar: “Eu sou isso?”

Entre estranhos (segunda parte)

Quando Frância entrou, o relógio tiquetaqueava no apartamento deserto. Tinha o punho marcado pelas sacolas de compras que ela, após fechar a porta atrás de si e entrar na cozinha quieta, pusera sobre a mesa, na qual deixara os tomates e as ervilhas. Na mesma mesa, que possuía, sobretudo, uma largura satisfatória, havia pãezinhos de cebola e maçãs. Comprara coisas em excesso? Ela olhava tudo, espantada. E olhava, sobretudo, o vermelho das maçãs. Pegou uma delas e desvirginando-a deu uma dentada, pondo-a de novo sobre a mesa. Parada, ela parecia uma mulher quase virgem.

Evidentemente que Frância não esperava por ninguém; nunca teve a petulância de esperar por coisa alguma, pequena que fosse.

Desta vez, ainda que sofresse um pouco, não convidaria Idílio, seu irmão. Passaria seu aniversário completamente sozinha, que este era o melhor modo de não se irritar com o falso amor que lhe davam. Talvez ela estivesse errada e quisesse demais, mas é que Idílio a tratava com muita indiferença. E quando conversavam, raras essas vezes, era debaixo de uma arrogância da parte dele que ela não conseguia compreender. Ele a punha num patamar de imbecilidade.

Frância estava suavemente espantada. Na cozinha, como um melão aquoso, ela passava um aniversário. Mais um ano de vida, aleluia! Era um rejúbilo e uma adoração estar sozinha. Frância se adorava como nunca. Adorava olhar seu alimento cru sobre a mesa. Adorava a ausência de Idílio, que certamente esquecera que ela estava viva. Adorava, enfim, ser tergiversada, pálida demais como seus vestidos velhos. Ela pensava que ser pálida era agir com vitória. Ser pálida, nunca loira.

Quando possuía seus vinte e poucos anos, Frância teve um namorado muito bonito que gostava de loiras. Mas... — este pensamento doía como revolta — mas o que fazer se ela não era loira? Ela ficava entristecida como uma pomba de cabeça baixa, mas disfarçava em seguida. E como se não bastasse o acontecimento trágico desse namorado ser muito bonito, ele, não se sabia por imaturidade ou falta de compaixão, a olhava com aqueles olhos lindos demais e indagava, depois que ela se perdia acreditando que ele declarasse amor: — Você não acha que eu sou muito bonito para você? — Embargada, quebrada como uma boneca preta e solitária, não sabia responder. Então, olhava para ele e depois fitava o nada, e dizia como se não estivesse de fato prestando atenção: — É, você tem razão. — Esse namorado não sabia o quanto Frância sofria. Esse namorado, que acima de tudo a culpava por ela estar viva e respirando com dificuldade sobre o chão frio dum local que ela não se lembrava agora, se transformou num reflexo imaginário que Frância fazia duma suposta sociedade. Esse namorado era-lhe tudo, e ela o amava. Frância pedia veementemente para que ele um dia acordasse feio, pois só assim ela poderia sentir o alívio dos cândidos, além de poder amá-lo sem culpa, porque enquanto estavam juntos ela pensava que um dia ele encontraria seu par perfeito: um alguém loiro demais para ser verdade. De uma brancura impossível.

Frância não era propriamente bonita. Não, não se poderia chamá-la de bonita. Talvez se a olhássemos de certo ângulo, se a víssemos de lado ou caminhando enquanto falava com alguém, ela poderia até ficar um pouco atraente. No entanto, o mais correto era afirmar que possuía mais simpatia que tudo. Não uma simpatia de pura graça, mas uma simpatia séria e quase intelectual. Andando pela rua, erguida e magra, Frância tomava a forma de uma intelectual, de uma mulher intransponível.

Deitada no sofá, fechou os olhos para dormir. Estava sendo seu melhor aniversário. A tardinha chegava calma e imatura. Enquanto não surgia a escuridão, num frescor de noite, ela estaria deitada, respirando baixo, com a cabeça apoiada, comemorando todos os seus aniversários duma vez só.





Ao passo disso, Gil treinava pas de deux com Alex no ateliê. Ele a rodava, segurando-a pela cintura delicada, mas um pouco larga para uma bailarina. Rodando assim, ela era um pião. Como Alex ficava bonito naquela roupa apertada. Suas pernas e suas nádegas rodavam e se elevavam quando dava o pulo.

Dê o pulo, Gil!... Você parece estar enferrujada. — ele a repreendia, largando-a para rodar sozinho ao compasso da música que agora alcançava o ápice.

De súbito, lá estava Alex de novo a agarrando pela cintura e a elevando nos ares. Os cabelos de Gil se desprenderam. Ela queria que eles fossem mais claros para que pudesse fazer o par perfeito com Alex.

Agora... — ele dizia muito próximo ao seu ouvido e ela se preparava para o pulo conjunto. — E um, e dois, e três... agora!...

Mas que diabo! Se antes ela tivesse esperado em demasia para saltar, desta vez, elevando-se demais e às pressas, acabou saindo do compasso para se ajeitar à marcha de Alex. Ela estava desconcentrada? Ele a abraçava mais uma vez. Puxa, que coisa desagradável! Ele podia vê-la tremer pela boca do estômago. Acuada como um passarinho diante do mundo. O coração batendo tão rápido.

— Escute... — ele parou o corpo dela, cingindo-a por inteiro — Você está cansada. Vamos parar agora.
— Não, Alex. Não, não... Vamos mais uma seqüência em pas de deux, porque preciso apanhar o pulo.

Ele sacudiu a cabeça e se sentou de pernas cruzadas. Ela não o compreendia...

Estou um pouco cansado. Por que não dança para eu ver?

Dançar? Ela se mostraria, enfim, para Alex? Rodando, rodando como um pião? Estava ruborizada. Mostrar-se assim era um pecado, ela pensou infantilmente. Pôs a mão na cabeça tentando se lembrar de alguma coisa a que mostrar a Alex. O moço a esperava vivo como uma sarça-ardente, de olhos profundos, a boca entreaberta. Ela se decidiria. Se se apanhasse um pouco decidida poderia dançar dum jeito engraçado para despistar seu desejo de levá-lo pra cama?

Feche os olhos, preciso me compor — disse.

Ele obedeceu, e quando de novo a fitou, Gil era uma mulher translúcida. Respirava ofegante debaixo do vestido. Sua boca estava vermelha e um colar de pérolas caía sobre os seios ovais. Ela estava linda.

A música deu início e ela arredou a perna para a direita, alisando o chão com a ponta dos pés nus. Depois, num estrondo, saltou e voou no ar como um cisne branco de asas abertas e pescoço erecto. Ela erguia os braços como feiticeira hindu e suas pernas se enrijeciam, uma defronte a outra. Gil dava a Alex uma dança que ninguém o daria: uma dança livre e escura. Os cabelos dela se balançavam no ar. Cabelos fortes e um pouco crespos, longos até à cintura. A música parou e ela também. Uma energia de luz inexplicável tomou conta de tudo. O apartamento estava vivo. Era uma gênese. Movimento de corpos mortos e de respiração iniciada na poeira antiga. Ela estava assustada. Assustada com o susto de Alex que, assombrado, só pode fechar completamente a boca por um momento.

Entre estranhos (terceira parte)

Quando os Algrave colocaram Jane e Geórgia no banco traseiro do auto, elas se sacudiram um pouco. Vestidas de renda e laços róseos na cabeça, tinham rostinhos castiços, embora Geórgia fosse mais grave que a irmã, quando a víamos de perto. Impossível dizer, sobretudo, qual delas era a mais velha, porque possuíam a mesma estatura física e até suas vozes eram parecidas. Mas Jane era um ano mais vivida que Geórgia, o que não a deixava com obrigação alguma de ser mais tranqüila. Ao oposto disso, Jane era mais difícil que a irmã em tudo, podia-se dizer. Principalmente quando os Algrave tinham de dar comida às meninas. Geórgia nascera para comer e, é claro, por isso, em segredo, Fátima Algrave a amava mais. Não é que esta mãe não amasse Jane, isto podia ser equívoco; mas é que Jane já era muito amada pelo pai. Os Algrave eram uma família de ruivos e sardentos. Tinham corpos grandes e saudáveis demais.

Podemos ir? — perguntou Fátima às meninas e elas sacudiram as cabeças. — Podemos ir, então — repetiu para o marido.

Arthur Algrave deu partida e o auto rolou de encontro à estrada.

O pneu tocava o chão e depois não tocava mais, assim em átimos de tempo... As meninas sempre cantavam Ô dia azul.

— Piiss... — censurou Fátima Algrave — Vocês duas vão tirar a atenção do papai.

E elas fizeram silêncio porque tinham medo de acidente. Especialmente Geórgia que tinha os olhos muito arregalados agora.

Mamãe, você não acha que Geórgia tem uns olhos muito grandes? Maiores que o natural? — perguntou Jane erguendo-se um pouco para que sua cabeça alcançasse o encosto da poltrona da frente.
— Não, querida, sua irmã tem olhos normais. Os olhos dela são bonitos como os seus.

Geórgia mostrou língua para Jane que começou uma risada que nunca mais tinha fim.

— Que há, Jane? — disse Arthur fazendo uma manobra com o volante.
Nada, papai. É que Geórgia hoje está muito engraçada.
Então pare de amolar sua irmã, querida.
Está bem, papai — respondeu contrariada.

Os passeios dos Algrave com as filhas eram curtos demais, porque Geórgia sempre se cansava e ficava irritada. Desse modo, era sempre necessário que não passassem muito tempo fora de casa, o que nem sempre era tão ruim. Mas Jane, de contínuo, reclamava e voltava para a casa redargüindo muito e fazendo bicos enormes com a boca. Essas irmãs em muito se diferenciavam, porque seus gênios eram opostos. Se Geórgia, no jardim — que a ela parecia nunca ter um fim definido — dava petiscos aos pombos, Jane os espantava logo para vê-los voando, de asas abertas. Os pombos nunca seriam de Geórgia enquanto Jane estivesse por perto. Com o tempo eles pararam de rodear Geórgia, já que ela estava sempre acompanhada por Jane. Quando Arthur Algrave percebeu o que acontecia era tarde demais. Mesmo que ele entretece Jane, os pombos deixavam Geórgia sozinha, chamando por eles.

Não os chame Geórgia! Deixe que eles venham por conta própria — aconselhava Fátima escondia atrás dos óculos de sol.

Mas eles nunca vinham.

As meninas estavam grandes, segundo um velho conhecido dos Algrave que agora passava por eles na praça. Decerto os Algrave não achavam isso, porque olhavam para as filhas com alguma desconfiança, embora sempre concordassem, por educação, quando as pessoas diziam que as meninas tinham crescido demais no último mês. — Ah sim, elas estão enormes. — A gente nem percebe e elas já estão namorando, não é? — As crianças estão crescidas mesmo. — Geórgia é um amor, mas Jane tem a personalidade da mãe... E... como estão grandes, não? Ah sim, elas estão grandíssimas. — Na verdade, Arthur pensava que a proteção dos pais aos filhos surgia como encargo ou tarefa que depois se tornava difícil renunciar. Admitir o crescimento de Geórgia e Jane era para ele beber de uma taça amarga do futuro, perdendo-as pouco a pouco, a cada centímetro. Já à Fátima Algrave, cuja natureza era mais fincada à realidade e à facilidade, era muito normal os filhos crescerem, porém Geórgia e Jane não tinham crescido tanto a ponto de estranhos notarem isso de um mês a outro. É claro, ela também preferia que as meninas ficassem crianças a vida toda, mas este desejo não era tão ávido quanto o de Arthur, cuja uma das mãos segurava Jane e a outra apontava um pombo que descia na outra quadra, para que Geórgia se aproximasse dele.

Depois de anos é que Geórgia e Jane, já moças, conversaram sobre os passeios no parque.

...Os Algrave, depois do passeio com as meninas, voltavam para casa. Elas estavam uma ao lado da outra e eram fisicamente muito parecidas. Mas Jane tinha uns olhos solertes, enquanto os da irmã eram indecisos, e talvez isso as individualizaria para o resto de suas vidas. Acontece que não era apenas isso que as diferenciaria. Havia milhares de situações onde Jane seria mais astuta, ao passo que Geórgia nunca saberia lidar sozinha com os tropeços naturais da vida, ou sequer agir debaixo de uma certeza ou intensidade. Inúmeras situações onde Geórgia seria mais amável e Jane agiria com mais secura. Várias circunstâncias as distanciariam, e apesar de tudo, nunca cortariam quaisquer contados. Isso tudo previa Arthur Algrave olhando-as de modo apaixonado, enquanto a esposa, vagando pela sala do apartamento, conversava com a nova empregada. — ... sim, é claro, as batatas primeiro, minha querida, eu já supunha. Só depois a carne, que deverá ser muito bem cozida, porque Geórgia tem um estômago fraco... — As vozes iam sumindo enquanto ele reconhecia as filhas, uma ao lado da outra. E depois as levaria para a cama, porque estariam cansadas; mas isso só de noitinha. Tiraria ele próprio as botinhas de abotoar de Jane; colocaria as pantufas amarelas ao pé da cama de Geórgia; apagaria os abajures e diria: — Rezem pra dormir, queridinhas... Piiss... Rezem pra dormir...





Quando o estranho se aproximou do bando, os trabalhadores acharam que ele ficaria parado, sem nada dizer, a observar apenas. Mas depois de algum tempo, o estrangeiro levantou uma das mãos e perguntou assim:

— Como faço para falar com Doutor Almeida?

Para desgosto do estranho — que se chamava Felipe, e nunca perguntava o nome de ninguém por falta de interesse — os trabalhadores riram um pouco antes que um deles, o mais gordo por sinal, dissesse, sem descer do andaime, que o senhor a que ele procurava já tinha morrido.

Então, uma densa lufa de risos se ecoou entrando pela construção e perpetuando sobre a atmosfera quente, que provocava peso nas cabeças.

Felipe deu as costas ao bando, mas de repente se virou.

— E o Doutor Carvalho?
— Ele se mudou há pouco... e completou o homem: — Se quer mesmo falar com um médico deve procurar o Doutor Fortes. A casa dele é bem ali, depois daquele trailer.

Parecia que o trailer não estava assim tão próximo ou ele estava enganado pela miopia? Não que fosse tão míope assim, mas é que desde quando passara a estudar durante a noite, sob a luz fraca dum abajur, ele notava a vista um pouco turva, esfumaçada. Mas era preciso continuar estudando à noite, que assim tinha a companhia do silêncio. E às vezes até dormia em profunda satisfação, e quando acordava pensava rapidamente antes que saísse do transe: — O nada também dorme sobre o peso duma escuridão. — Ele, então, numa agilidade engraçada, pegava seus óculos pondo-os sobre a cara para ver pela janela a mesma árvore que via todas as manhãs, nessa mesma hora. Se antes as folhas não passavam duma massa inteiramente verde, depois, com o apoio dos ósculos, essas mesmas folhas possuíam propriedades inacreditáveis. Era como se ele começasse, de fato, a saber das coisas vivas.

Enquanto andava parecia um pouco triste. Sua cabeça não estava tão erguida e suas mãos se engrazavam suadas. Ele prestava atenção no seu coração que batia. Mas mortificou-se ao passo que uma moça, nem tão bonita nem tão feia, cruzava seu caminho. Ele a viu; era T., sua antiga namorada. A moça deu-lhe um cumprimento insignificante, apenas um aceno de cabeça e um sorriso meio encanecido. Ela tinha uma esperança vetusta no olhar, achava Felipe. Será que ela ainda o amava? Era possível. T., ainda magra, apesar das vitaminas que tomava para ganhar massa, adiantou-se e sumiu de vista.

Foi quando percebeu que estava ficando tarde.

Apertou a campainha no lugar indicado.

— Que é? — disse a voz que vinha de dentro.
Preciso falar-lhe...
O quê?
— Preciso falar-lhe! — respondeu Felipe um pouco impaciente.

O homem abriu a porta; ele tinha um cigarro entre os dedos, além de ser calvo e bastante velho. Seu rosto antigo sofreu uma pequena mutação. Mas uma mutação superficial e leve como pluma sobre água. Ele era o médico.

— Que é?
— É mamãe.
— Quem?
— Mamãe está passando mal.

Doutor Fortes abriu completamente a porta e vendo que era Felipe, filho de Maria , deu uma risada que lhe sujou a cara de rugas.

— Volte para sua casa e ela já estará boa.
— Como?
— Faça o que lhe disse e não me atormente mais. — disse o médico.

Felipe ficou por segundos ali parado antes de voltar para o apartamento e ver que realmente a mãe já estava completamente regenerada, andando vivamente de um lado para o outro, aguardando-o com impaciência. A Felipe, era ainda difícil distinguir quem era o louco daquela casa, ele ou a mãe. Ela lhe dizia: — Coma feijão, Felipe, que mamãe, sua avó, morreu com ossos fracos como cascas de ovos. Se quiser assim, faça bom proveito! Fique com suas casquinhas de ovos, que os médicos já disseram que feijão é bom por causa do ferro. — E às vezes, enquanto ele escrevia seus contos, que nunca viria a publicar, ela aparecia nas suas costas para atormentar-lhe as idéias com aqueles assuntos que podiam esperar o nunca. Ela batia nas costas dele: — Você ouviu? ouviu, querido, o que eu acabei de dizer? então o que foi? Repita o que eu disse. — Ou então: — Pare de ler, que dessa forma você vai acabar morrendo. — Ou ainda: — Você não se cansa disso? Fica escrevendo porcarias que não lhe servirão de nada na vida. Procure um emprego que lhe garanta alguma dignidade futura. Você só se mistura com gente da pior laia, meu querido. — Mas Felipe a amava e não possuía forças para se opor ao que ela, naquela voracidade de louca, dizia. Ficava mudo e às vezes, enquanto ela dormia, fingia estar sozinho em casa. Mas era certo que ele também não era tão ajuizado, principalmente quando visualizava tudo, desmembrando os atos em arrumações de palavras que rodopiavam em sua mente. Era como se ele estivesse dentro dum romance que ele próprio escreviasem prever o próximo parágrafo. Ele nunca antecipava. Até mesmo quando se lançava ao trabalho de escrever, mesmo sobre a avidez e a loucura, ele não sabia bem como conjecturar a frase seguinte, e tudo saía numa espécie de mistério para ele mesmo. E assim, vivia, de susto em susto. De não em não. Nunca chagando a ser, como a mãe desejava, alguém na vida.

Deixou a mãe na sala sobre os protestos de “você nem serve para me trazer um médico, sendo que eu estou quase morrendo”, e foi se deitar. A cabeça muito pesada, como se um enxame de abelhas mudas estivesse dentro dele, esperando o momento de zunirem, todas duma única vez. Levantou-se. Pegou um livro. Leu-lhe o título: A vida de Mrs Parker. Não leu o nome do autor, mas supôs que fosse inglês. Deitou-se de novo e, mesmo deitado, respirando com os lábios enegrecidos, acendeu um cigarro. Fumava olhando o teto que parecia engoli-lo com mandíbulas duma salamandra gigantesca. E se ele se levantasse para procurar um emprego? Lecionar, por exemplo, lhe parecia boa coisa. Sabia Felipe que o emprego de professor lhe agradaria, desde que tinha jeito e paciência para transmitir certas coisas. Mas a verdade é que Felipe não queria transmitir nada a ninguém, nem a ele próprio. Ele queria o silêncio e a escuridão como formas de ensino a si mesmo. Ele estava aprendendo? Sim, ele estava aprendendo. Calado, ele aprendia. Seus pensamentos eram verdadeiros ensinamentos, embora transmiti-los seria tarefa difícil... e... catastrófica. Ele não ensinaria corretamente e estaria sujeito à forca.

Ouviu a mãe chamando seu nome, não atendeu. Ela acharia que ele tivesse adormecido. Esperou por um momento e vendo que a voz da mãe não retornaria, fechou os olhos porque tudo rodava naquela claridade desmaiada da tarde. E só agora percebera que a cama estava um pouco dura e seus ossos, à altura das nádegas, doíam um pouco. Virou-se, não encontrava lugar satisfatório. Não podia, de modo algum, ter perdido o emprego no departamento de comunicação. Este emprego, que não era em si um emprego, mas um estágio remunerado, assegurava-lhe algumas regalias que ele agora não possuía mais. Ele tinha dívidas e precisava pagá-las o mais cedo quanto possível. Pegou sobre a mesa um envelope; tirou de dentro dele uma correspondência que dizia: “Caro Felipe, Até o momento, não foram encontrados em nossos registros os pagamentos referentes aos débitos abaixo relacionadas ao fundo de formatura. Segundo o estatuto responsável por sua gestão é ‘obrigação dos associados pagar, pontualmente, as mensalidades do fundo’. Baseados nesses princípios é que pedimos a gentileza de entrar em contato conosco por telefone, para que possamos negociar as parcelas em atraso”. Felipe reparou que na orla do papel havia o número telefônico, e mais acima a exposição dum quadro que mostrava exatamente os meses que ele deixou de pagar: junho, julho, agosto e setembro. Pôs a correspondência de lado e procurou pensar noutra coisa. A mãe jamais poderia saber dessas dívidas; ela não o compreenderia. Arregalou os olhos e, através do vidro da janela, viu as pessoas circulando lá embaixo, umas ao lado das outras. Era tudo muito engraçado. Decidiu que não participaria da festa de formatura, já que ninguém de sua turma de estudo faria questão de sua presença. A essas pessoas ele era uma espécie de louco, e só dois ou três o tratava com admiração. Desses três, um deles tinha Felipe como um irresponsável, uma criança a quem os passos deveriam ser vistoriados, o que deixava Felipe irritado e desarmado. Há muito não ia à universidade. Neste período, os estudantes concluíam seus trabalhos de término do curso em casa. Mas ele, em suas análises, não conseguia passar do capítulo primeiro. Ele estava ocupado demais em sua vadiação, cujos âmbitos circulavam em torno de uma suposta vivência para a arte, ou de forma geral, para um sentimento que ele denominava “alta percepção”. Falar com a mãe era impossível. Compreender era impossível. Restava-lhe apenas aceitar. Mas aceitar o quê? Tudo era um “não”.

Esse “não”, que antes Felipe recebia com brandura, agora o arranhava como as garras duma gaivota branca, mas cheia de ódio. Ele mexera no ninho da gaivota? Ele estava um pouco assustado, pois se mexera no ninho duma gaivota era porque sua inteligência falhara. Nunca se mexe em ninhos tresloucados de ramas. Principalmente quando esses ninhos pertencem às gaivotas brancas, que ele nunca vira de perto, pois não morava no litoral e não era, como se podia dizer, viajado. Já as pombas ele as via a todo momento e não gostava delas.

Retornar de uma loucura? Parou, pôs os pensamentos em ordem, amanhã seria domingo. Estaria mais preparado para qualquer coisa.

— Felipe. — disse a mãe batendo à porta. — Abra, Felipe!
— Que é? — ele respondeu sem coragem.
— Abra logo.

Ela forçava a porta, tentado arrombá-la.

— Que foi?! — impacientou-se o moço saindo do quarto subitamente.

Maria, pálida e de lábios quase pretos, deu ao filho um bilhete que dizia: “Convido os moradores deste edifício para uma comemoração em meu apartamento, de nº 302, a fim de estreitarmos nossos laços, amanhã, às 21:30, sem pretextos. Com respeito e esperando suas presenças...” Felipe leu embaixo a assinatura da Gil Fedrosa e cerrou o bilhete. Fazia, acima de tudo, um calor de verão.






Aos poucos os convidados foram chegando. Primeiro Frância num vestido assustadoramente rubro que pedira emprestado à Ângela, sua amiga. Depois, os Algrave segurando as filhas, Jane e Geórgia, pelas mãos. — Como estão crescidas! — disse uma voz frouxa vinda da ante-sala. E, por fim, Felipe com sua mãe agarrada ao braço direito para que ele não a deixasse tropeçar no tapete fofo, que de tão vermelho, chamejava como fogo.

A galinha, sobre a mesa, parecia jamais ter tido vida. Sem a cabeça, com as patas juntas e com enfeites coloridos, à volta. Mais alimentos se estendiam ao relento, tantos que era impossível descrevê-los.

Fosse calor ou frio o que fazia, decerto ninguém notava. Estavam todos estirados. À mesa, especialmente, eles. Em pratos caros, ao lado do arroz invisível de tão branco, lívidos e sem culpa. E tentavam uma concatenação impossível, porém inteiramente desatenta, porque eles nem se conheciam. Seus olhos eram olhos de estranhos desconfiados, de sobrolho erguido, esperando o ataque, prevendo qualquer golpe. Eles, sem ausentar nenhum, eram os golpistas. Até mesmo as crianças odiavam e, maléficas, mostravam língua para os mais estranhos. Impossível saber quais eram os mais estranhos? Jane e Geórgia estavam assustadas; elas não se encontravam. Queriam fugir para brincar com os pombos lá fora, correndo no infinito dum jardim, de braços abertos, livres. Pois caía um tal silêncio torturante como uma onda suspensa e fora de movimento.

— Mamãe! — Geórgia pediu socorro, mas a mãe não a escutou. Ou Fátima Algrave queria mostrar como se vivia? Ela continuou imóvel olhando para o marido que comia em silêncio, de cabeça retrocedida, de olhos pouco abertos, seu maxilar em movimento eqüino. Jane não pedia socorro, divertia-se e dava risadinhas abafadas quando algum olhar desatinado caía sobre ela. No entanto, estava cansada. Onde estavam as bonecas e os doces? Aquela mulher, de vestido escuro, não era bonita como uma boneca. E aquele moço parecia coisa estragada, pensava Jane enquanto olhava Felipe fazer bolinhas com o miolo do pão.

A mesa, em resposta a tudo, se doava. Já eles se doavam em pior espécie: a dos animais que comem sem agradecer. Agradecer a presença um do outro, era demais! Suportar era uma dor longa como a própria mesa que engasgava o cômodo.

Percebendo que ainda não haviam se apresentado, todos se ergueram. A princípio Arthur, entalado pela farofa.

— Meu nome é Arthur Algrave.

E assim sucessivamente, até que chegou a vez de Jane e Geórgia, e por elas, respondeu Fátima Algrave: — Estas são nossas filhas, Jane e Geórgia Algrave. — As meninas sorriram e as covinhas afundaram dentre as sardas.

De fato, eles mereciam a mesa como mereciam uns aos outros, por serem estrangeiros. Nisto eram idênticos: os que inexistiam lado a lado, que subiam cuidadosamente as escadas do edifício para não serem pegos de surpresa, vivendo. As sacolas de compras fazendo ruídos baixos, um “piiss...” no ar, como faziam os Algrave para conterem as filhas. Os passos sorrateiros evitando que fossem surpreendidos. Entretanto, o mais importante, era que eles se esquivassem da sentença. De certo modo, já estavam sendo culpados e um juiz, que poderia ser Gil Fedrosa, a anfitriã e bússola daquela plêiade de ignorados, sofreria muito mais num futuro próximo. Ela já beijava o erro que cometera, e buscava uma resignação fora de alcance. Resignada, não mais pecaria. Ela tinha tempo e espaço inacabados. Daí que, ver-se transmutada na figura de Felipe era um ato de idiotice, pois ele se parecia muito com Alex e com Frância; e se parecia com Geórgia, não Jaine. Ele, esse petulante, não era nada. Estava seco como uma nódoa antiga. Parado, com aqueles óculos que nunca tirava da cara. O artista. Qual inteligência lhe atribuir? Evidentemente nenhuma. Ele estava indiferente, mas todos estavam também. Cada qual em busca duma adivinhação que, indubitavelmente, era o ato maior de vida própria. Eles existiam de forma única, sem interesses. Interessavam-se pela comida até certo ponto, porque depois os alimentos foram tomando sabor de água gaseificada. Uma água de gosto variado, porque sorvera odores da comida estragada na geladeira. E deixaram completamente os alimentos. Quando em quando, alguém punha uma azeitona na boca e, por medo, engolia o caroço, ofuscando os olhos, porque a garganta estava sendo obstruída e iniciada. Palavra? Que dizer? Não havia nada para ser dito que os ancestrais não disseram no passado. No silêncio a ordem era mantida, pois se alguém quisesse dizer qualquer coisa saberia levantar a mão e pedir licença. Tensos, os lábios apertados, eles não tinham coragem de arruinar tudo com palavras desnecessárias. Os pés debaixo da mesa jamais se tocavam. Os corações estavam atordoados.

Gil se levantou, pegou o vinho e o serviu. Eles degustaram quietos, com exceção das crianças que protestaram. Jane queria vinho a qualquer custo. Então, um dos Algrave molhou-lhe a boca e ela pôde bebericar um pouquinho, mas tão pouco que não pôde sentir um gosto longínquo de maçã. Era possível?, indagava Felipe a si mesmo, esperando alguma coisa que nunca aconteceria.

As falhas de Olívia


Sabíamos com certo desgosto que não haveria festa na casa do tio Érico, e para esquecermos o fato constrangedor de estarmos com roupas novas sem necessidade, entramos numa circunspecção que nos levava ao cansaço, pois estávamos fartos. A essa altura, vovó já tinha nos chamado inúmeras vezes para comermos de seu pudim, o mesmo que seria levado à casa de tio Érico caso tivesse a festa, para que ela, vovó, cumprisse a importante tarefa de ser primeira-mãe no aniversário de Olívia. Não é que Olívia fosse criança para comemorar o dia de seu nascimento com bolo e “parabéns pra você” e, ao oposto disso, adulta que era, possuía até emprego de secretária. Mas é que em certas famílias comemorar aniversário é questão vital. Ao passo de dois meses comemoraríamos os noventa anos de vovó.

Qualquer lembrança a respeito de Olívia cai no constrangimento de que possuía olheiras, lábios roxos e estreitos, além de sardas que lhe davam ar de alimento fora da validade. Era dessas mulheres que, grandes e brancas, comem pão seco de manhã porque simplesmente não se lembram que na geladeira há geléia ou manteiga. E, de manhã, com a ausência estranha de geléia ou manteiga no pão de Olívia, eu, calado, a olhava, desconfiado que meu silêncio de criança pudesse aborrecê-la.

Aquela mulher eu não compreendia. Tento falar sobre seus sustos que eu, sob o espanto dela, percebia numa avidez de criança esperta que não poderia supor que sua existência infantil destruísse os sonhos de Olívia ser livre. É que meus olhos inquisidores procuravam em Olívia os defeitos que mamãe não possuía, e encontrando-os, eu logo dava um jeito de dizê-la; e esta era a única ligação que nos mantinha numa tensão de experiência. Certa vez invadindo o quarto de Olívia eu a vi sentada na cama lendo e fumando ainda de pijamas. Passaram-se minutos até que ela percebesse a minha presença, sentado no banquinho, de pernas cruzadas, vendo os seus defeitos.

— Que foi?, ela perguntou amedrontada.
— É que ninguém fica de pijamas até às onze da manhã.
— É que eu acordei agora e ainda nem as cortinas abri...

E porque também ninguém fica num cômodo de cortinas fechadas pela manhã de sol, eu a olhei em desaprovação e saí do quarto. Eu sabia que Olívia sofria e aprendia comigo, porque no outro dia ela já lia de cortinas abertas e estava vestida impecavelmente como que indo a uma festa, e para seu desgosto, eu via que tudo estava a meu modo. Ela me olhava perplexa. Acontece que tudo estava a meu modo exceto pelo fato de ela estar vestida como que indo a uma missa de domingo. Ela estava confusa...

— O quê?
— Vai a algum lugar?
— Eu?
— É, você.
— Eu não.

E para que ela não esquecesse que sempre estava errada, eu a fitava de cima abaixo, medindo o vestido escarlate no seu corpo branco que deixava à mostra os braços e as pernas. E então, dava um sorriso que soava como um “você não aprende nada”, e não dizendo qualquer palavra ofensiva, desde que a ofensa já tinha sido expressa com êxito, me punha ao lado dela, atordoando-a com minha muda presença. E não ia embora nunca mais, porque eu gostava de Olívia e gostava, por meio de um sentimento ávido que se chamava amor, de me tornar presente na vida dela ensinado-a a viver; eu era a exata constância de Olívia, a rotina necessária para que ela não cometesse, por exemplo, um suicídio ou se tornasse, para aliviar a tensão de ser uma mulher solitária, a responsável pela morte de alguém. Eu era assustadoramente a única chance de Olívia ser melhor e ela, para não errar mais, ouvia-me com atenção embora fingisse não me dar ouvidos porque lia algo urgente enquanto eu a ensinava. Mas ela não lia nada. Seus olhos, desde sempre, estavam presos no mesmo ponto e sua boca, mais roxa que o natural, se contraía de tanto pavor porque eu sabia demais sobre ela.

Será que eu estava sendo o pecado impossível que aquela mulher nunca tivera? É que uma vez, como a veemência de um pecado brutal, eu a fizera chorar sem querer. Eu descobrira que Olívia estava amando um moço seu vizinho. E então descobrindo seu íntimo eu disse aparvalhado:

— ... mas é que você não sabe namorar.

Alguma coisa incômoda me descompusera. Alguma coisa com a força dum ciúme. Pois Olívia, sendo minha, não poderia ser de mais ninguém, e eu então me desequilibrara um pouco para poder me aproximar da falta que Olívia me fazia. E eu estava tão aturdido que ela, percebendo, deu um sorriso que eu não suportei em não acompanhar. Rimo-nos os dois, pois o que eu dissera era uma coisa impossível e ela sabia que eu, pela primeira vez, errara. Só que eu não errara completamente..., eu apenas tivera um estrabismo de pensamento. Quando percebemos juntos que eu estava de certo modo correto, ela teve o rosto ruborizado e ficou calada até que eu fosse embora e ela pudesse chorar sozinha. Na verdade, sem saber lidar com os fatos, eu queria salvar aquela mulher que eu amava. Eu queria, na coincidência de participarmos do mesmo clã, acompanhá-la para sempre — coisa de sangue coagulando dentro de corpos irmãos — para de algum modo eu ser regado e crescer dentre os meus. E Olívia também me queria e amava minha arrogância de criança sabida... Uma vez, eu disse a ela que não voltaria mais ao seu quarto para ensinar-lhe as coisas e ela, apavorada e com o coração batendo, disse que eu não fizesse isso. Voltei no outro dia depois do café da tarde.

E nunca soube de fato quando encontrei Olívia pela primeira vez, da mesma forma que eu não sei do primeiro momento em que eu tomei consciência de que tio Érico era pai de Olívia — o que os ligava de uma forma incompreensível: da mesma forma que eu era ligado à mamãe, da mesma forma que os homens são ligados a outros por matéria de sangue — eu não compreendia. Só me restava a ciência muda de ser um agente: isso eles quiseram de mim. Acontece que, ao passo de uma nova civilização, onde todos eram vesgos, Olívia era a minha maior dificuldade em enxergar; e passei de repente a chamá-la, quando ela não estava por perto, de Miopia. Eu era a criança errada porque desde cedo eu questionava e não compreendia, questionava e não compreendia, questionava e não compreendia, etc., etc., etc. Realmente, dentro de minha ciência, eu sempre quisera ser a criança certa e nunca, nunca um agente, o que eles quiseram que eu fosse sem meu consentimento. Eu não era inteligente como Olívia dizia, eu apenas nascera para incomodá-la, porque essa era a forma que encontrei para ser aceito por ela, e uma vez vendo que tudo saíra como planos de um astuto agente, eu mergulhava na minha nova forma de amar.

Eu quisera interrogar Olívia? eu me pergunto sabendo que, acima de tudo, eu não podia interrogá-la. Eu nem podia tocá-la por vergonha e medo. E eu — eu estava assustado, porque já a atingia de modo torturante, mas por amor àquela mulher que vivia estranhamente.

É que Olívia recebia chamados. À noite, ela se dava ao que não podia suportar: a uma palidez veemente de lua. E de rosto pálido, debruçada sobre a janela, ela se transformava na mulher que trabalharia no dia seguinte. Não, eu estava enganado: depois de muito tempo é que me dei conta que Olívia não tinha mais emprego.

Se eu ficava enfim aliviado era por uma esperança futura de que eu não tinha relação com a falta de trabalho que Olívia possuía na vida. E por ser bonachão. Ela se dedicara e ser a sua própria falha. O laço torno na cabeça da criança. E nada ou ninguém poderia estar à sua frente. Eu estava à sua frente? Eu era muito impossível para ela, logo essa impossibilidade disturbada de ser água em deserto para regar em minha obstinada incredibilidade. Se eu a conhecia era por pura letargia muda e seca que posteriormente entendi, numa espécie de chamado, como sendo uma paixão. Não que eu quisera ser o homem futuro de Olívia, é de outra paixão que falo. E minhas mãos se esgalharam porque eu estava sendo a sua futura morte. Dez anos depois, sozinho em meu apartamento, recebi por telefone a notícia sobre a morte súbita de Olívia. E de pé, eu perdia minha compostura, todo quebrado e pálido. Meus olhos abertos, meu coração batendo: ela então sempre estivera apostando em mim? o fato de sua morte fora uma mensagem. Uma continuação, um beijo? Eu havia perdido a chance de salvá-la, o que me levou ao meu primeiro erro depois de anos vivendo. Muito branco, como um filho órfão de Olívia, eu não possuía coragem para acreditar em mim mesmo: ela me ensinara algo.

O fato é que dez anos antes eu me sentara com minha roupa nova à guisa de esperar... por ela? Seu corpo grande e branco me comovia. Então se eu lutava inconscientemente pela sua presença, eu lutava também para sentir a angústia de não poder sujá-la de minha desbotada intenção em ultrapassá-la? Eu não queria nada, porque lacônico em minha arrogância, eu esperava. Contido e malvado. Em resposta a todo amor que eu lhe dedicava ela me retribuía com ódio. Somente pelo fato de não me querer por perto. Mas eu me reerguia como um cavalo após a queda: limpo e probo. E dava passos ao seu encontro. Seria isso? Não me recordo mais.

Mas da poeira eu sempre me esquivava. Da poeira eu sempre saía para de novo aceitar uma vida. E para esporadicamente ver Olívia na praça dando grãos aos pombos desde sempre. Quando ela enfim soube que seu segredo estava descoberto, nunca mais foi a praça digna de pombos a que dar qualquer grão. Suas praças passaram a ser tão limpas de extrema doçura. E ela passou a sofrer de minha falta, pois em praça intensamente limpa eu, ressaltado em minhas inatingíveis ânsias por complexidade, jamais poderia pisar. Ânsias?! É que as praças de Olívia pareciam não ter um fim. E eu me perderia em meio àquelas árvores grandes demais. Tudo era longe e enorme. A relva se estendia fria.

Quanto ao aniversário, debaixo de alta vigília e olhos abertos demais, Olívia não comparecera. A agravante de tudo é que não aparecera nos seguintes cinco dias. E quando, por fim, mais branca que antes, de lábios realmente muito roxos, ela surgiu empurrada pela luz da porta, seguiu calada para o quarto e lá ficou durante mais cinco dias sem entrar em contato com o mundo. Exceto à noite quando abria a janela. Aí ela se comunicava com a lua que também era branca.

Não me lembro bem quando parei de importuná-la. Acho que foi quando ela disse com um sorriso curioso nos olhos e uma boca de morta:

Eu acho você um menino muito estranho.
Eu?
Você é tão engraçado que parece meu filho.

Ela me insultara. E me insultara com a coragem que eu nunca possuí. Ela me empurrara para o inferno de não compreensão, dera-me a verdade que eu não suportava por não entender os adultos. Ela me colocara no seu patamar de idiotice. Desanimado e fingindo achar graça, eu lhe disse:


"O quê?"

Ela sabia demais..., ela estava perto demais da verdade. Então, fechei os olhos com força, o coração acelerado. Eu estava sendo o primeiro homem daquela mulher e ela me amava? Parado, com uma gota de suor descendo o pescoço, eu me fizera todo angústia e dor. Para minha inopinada tortura, sem me desfitar, ela pôs a mão no meu ombro e sua mão pousou como uma grande ave pesada. Eu senti a força mítica daquela mulher, eu senti sua energia-malsã, e seus olhos eram bons demais para que pudesse suportar. E, então, ela falou embargada:

Quem ensinou a você todas as coisas?
... ora, ninguém..., respondi.
Então, ela disse, então está bom.
O que está bom?
Isso.

Por um minuto ela fingiu me esquecer e passou os olhos pelas páginas dum livro. Então, porque era a minha chance de fugir e gritar de tanto pavor, eu terminei por colocar-me à prova de, pela primeira vez, sair ofendido.

Eu preciso ir agora.
Você quer ir embora?
Eu posso?
Se você quiser...
Então, então eu vou.

Ele é apenas um menino, apenas um menino, ela pensou quando saí? Eu estava confuso demais, eu estava importunado e sem entender. Mas, como agente, eu buscava uma resposta que só não poderia ser muito rápida porque eu corria em direção ao infinito, a mão cobrindo a boca, a rua se alargando, sem nunca ter fim... correndo. Até que meus passos foram se atenuando, e sem querer me agarrei a uma árvore que eu nunca tinha visto. Olívia a pusera ali para que eu, enfim, fraquejasse? Olívia. Não... estava sendo demais. Pus-me a correr de novo para o fim inexistente, entre praças e vultos.

(2002)