quarta-feira, 19 de maio de 2010

Entre estranhos (segunda parte)

Quando Frância entrou, o relógio tiquetaqueava no apartamento deserto. Tinha o punho marcado pelas sacolas de compras que ela, após fechar a porta atrás de si e entrar na cozinha quieta, pusera sobre a mesa, na qual deixara os tomates e as ervilhas. Na mesma mesa, que possuía, sobretudo, uma largura satisfatória, havia pãezinhos de cebola e maçãs. Comprara coisas em excesso? Ela olhava tudo, espantada. E olhava, sobretudo, o vermelho das maçãs. Pegou uma delas e desvirginando-a deu uma dentada, pondo-a de novo sobre a mesa. Parada, ela parecia uma mulher quase virgem.

Evidentemente que Frância não esperava por ninguém; nunca teve a petulância de esperar por coisa alguma, pequena que fosse.

Desta vez, ainda que sofresse um pouco, não convidaria Idílio, seu irmão. Passaria seu aniversário completamente sozinha, que este era o melhor modo de não se irritar com o falso amor que lhe davam. Talvez ela estivesse errada e quisesse demais, mas é que Idílio a tratava com muita indiferença. E quando conversavam, raras essas vezes, era debaixo de uma arrogância da parte dele que ela não conseguia compreender. Ele a punha num patamar de imbecilidade.

Frância estava suavemente espantada. Na cozinha, como um melão aquoso, ela passava um aniversário. Mais um ano de vida, aleluia! Era um rejúbilo e uma adoração estar sozinha. Frância se adorava como nunca. Adorava olhar seu alimento cru sobre a mesa. Adorava a ausência de Idílio, que certamente esquecera que ela estava viva. Adorava, enfim, ser tergiversada, pálida demais como seus vestidos velhos. Ela pensava que ser pálida era agir com vitória. Ser pálida, nunca loira.

Quando possuía seus vinte e poucos anos, Frância teve um namorado muito bonito que gostava de loiras. Mas... — este pensamento doía como revolta — mas o que fazer se ela não era loira? Ela ficava entristecida como uma pomba de cabeça baixa, mas disfarçava em seguida. E como se não bastasse o acontecimento trágico desse namorado ser muito bonito, ele, não se sabia por imaturidade ou falta de compaixão, a olhava com aqueles olhos lindos demais e indagava, depois que ela se perdia acreditando que ele declarasse amor: — Você não acha que eu sou muito bonito para você? — Embargada, quebrada como uma boneca preta e solitária, não sabia responder. Então, olhava para ele e depois fitava o nada, e dizia como se não estivesse de fato prestando atenção: — É, você tem razão. — Esse namorado não sabia o quanto Frância sofria. Esse namorado, que acima de tudo a culpava por ela estar viva e respirando com dificuldade sobre o chão frio dum local que ela não se lembrava agora, se transformou num reflexo imaginário que Frância fazia duma suposta sociedade. Esse namorado era-lhe tudo, e ela o amava. Frância pedia veementemente para que ele um dia acordasse feio, pois só assim ela poderia sentir o alívio dos cândidos, além de poder amá-lo sem culpa, porque enquanto estavam juntos ela pensava que um dia ele encontraria seu par perfeito: um alguém loiro demais para ser verdade. De uma brancura impossível.

Frância não era propriamente bonita. Não, não se poderia chamá-la de bonita. Talvez se a olhássemos de certo ângulo, se a víssemos de lado ou caminhando enquanto falava com alguém, ela poderia até ficar um pouco atraente. No entanto, o mais correto era afirmar que possuía mais simpatia que tudo. Não uma simpatia de pura graça, mas uma simpatia séria e quase intelectual. Andando pela rua, erguida e magra, Frância tomava a forma de uma intelectual, de uma mulher intransponível.

Deitada no sofá, fechou os olhos para dormir. Estava sendo seu melhor aniversário. A tardinha chegava calma e imatura. Enquanto não surgia a escuridão, num frescor de noite, ela estaria deitada, respirando baixo, com a cabeça apoiada, comemorando todos os seus aniversários duma vez só.





Ao passo disso, Gil treinava pas de deux com Alex no ateliê. Ele a rodava, segurando-a pela cintura delicada, mas um pouco larga para uma bailarina. Rodando assim, ela era um pião. Como Alex ficava bonito naquela roupa apertada. Suas pernas e suas nádegas rodavam e se elevavam quando dava o pulo.

Dê o pulo, Gil!... Você parece estar enferrujada. — ele a repreendia, largando-a para rodar sozinho ao compasso da música que agora alcançava o ápice.

De súbito, lá estava Alex de novo a agarrando pela cintura e a elevando nos ares. Os cabelos de Gil se desprenderam. Ela queria que eles fossem mais claros para que pudesse fazer o par perfeito com Alex.

Agora... — ele dizia muito próximo ao seu ouvido e ela se preparava para o pulo conjunto. — E um, e dois, e três... agora!...

Mas que diabo! Se antes ela tivesse esperado em demasia para saltar, desta vez, elevando-se demais e às pressas, acabou saindo do compasso para se ajeitar à marcha de Alex. Ela estava desconcentrada? Ele a abraçava mais uma vez. Puxa, que coisa desagradável! Ele podia vê-la tremer pela boca do estômago. Acuada como um passarinho diante do mundo. O coração batendo tão rápido.

— Escute... — ele parou o corpo dela, cingindo-a por inteiro — Você está cansada. Vamos parar agora.
— Não, Alex. Não, não... Vamos mais uma seqüência em pas de deux, porque preciso apanhar o pulo.

Ele sacudiu a cabeça e se sentou de pernas cruzadas. Ela não o compreendia...

Estou um pouco cansado. Por que não dança para eu ver?

Dançar? Ela se mostraria, enfim, para Alex? Rodando, rodando como um pião? Estava ruborizada. Mostrar-se assim era um pecado, ela pensou infantilmente. Pôs a mão na cabeça tentando se lembrar de alguma coisa a que mostrar a Alex. O moço a esperava vivo como uma sarça-ardente, de olhos profundos, a boca entreaberta. Ela se decidiria. Se se apanhasse um pouco decidida poderia dançar dum jeito engraçado para despistar seu desejo de levá-lo pra cama?

Feche os olhos, preciso me compor — disse.

Ele obedeceu, e quando de novo a fitou, Gil era uma mulher translúcida. Respirava ofegante debaixo do vestido. Sua boca estava vermelha e um colar de pérolas caía sobre os seios ovais. Ela estava linda.

A música deu início e ela arredou a perna para a direita, alisando o chão com a ponta dos pés nus. Depois, num estrondo, saltou e voou no ar como um cisne branco de asas abertas e pescoço erecto. Ela erguia os braços como feiticeira hindu e suas pernas se enrijeciam, uma defronte a outra. Gil dava a Alex uma dança que ninguém o daria: uma dança livre e escura. Os cabelos dela se balançavam no ar. Cabelos fortes e um pouco crespos, longos até à cintura. A música parou e ela também. Uma energia de luz inexplicável tomou conta de tudo. O apartamento estava vivo. Era uma gênese. Movimento de corpos mortos e de respiração iniciada na poeira antiga. Ela estava assustada. Assustada com o susto de Alex que, assombrado, só pode fechar completamente a boca por um momento.

Um comentário:

Unknown disse...

vc como sempre ...é especial...