sexta-feira, 7 de maio de 2010

A adoção

Quando a moça viu a pompa já era tarde demais: seu trabalho já a conduzira para algo que só não se aproximava de uma preguiça eterna porque isso era absurdo. Mas cansada, era como se o dia estivesse ensolarado, pois sobre sua cabeça havia o peso de muitos anos. E se acaso um dedo do sol caísse fraco sobre um móvel, era por causa de sua terrível imaginação que também, por ser tão fértil, criava coisa. O animal respirava ao canto, assustado. E a verdade era que, estando a trabalho, se apanhava cansada demais para ver uma pomba no escritório. E pensar que as paredes eram suas era loucura, pois a verdade estava apenas no que havia pensado antes de ter erguido os olhos e meneado o maxilar, porque depois da pomba tudo passou a ser mentira. Nunca ocorrera à moça que, de repente, uma pomba pudesse aparecer ali, mesmo que no telhado, que se erguia acima do segundo andar, as pombas vomitassem as suas estirpes barulhentas ao passo de cem. Lembrou-se que, quando em quando, uma pomba se aproximava e depois fugia repentinamente. Assustada, também se lembrou que por uma única vez viu uma pomba triste que não fazia nada a não ser deixar a cabeça caída sobre o pescoço. Aquela foi uma terrível vez porque a pomba não estava dormindo, estava mais que isso, estava doente. Ficou tão confusa que esfregou a manga do vestido sobre a testa.

E por algum tempo, era como se nada existisse. Decididamente ela fitou lá fora as donas que passavam sem os filhos. A moça, certa vez, tinha atendido uma delas que, muito nervosa, reclamava sobre o benefício que recebera do governo. Ela sabia que elas nunca tinham bebido coca-cola de verdade, e por isso sentiu sede. Visualizou um copo de água e sua boca breve salivou. É que, sobretudo, lá fora jogavam lixo num container; e era como se toneladas de lixo seco e fedorento lhe descesse garganta abaixo. Ela engolia à contragosto o melhor do mundo e para disfarçar erguia as sobrancelhas, fazendo cara de secretária eficiente. Apesar de tudo, pensou, era tão limpa! E suas roupas tinham cheiro de almíscar. Por outro tempo, pensou no filho que carregara no ventre... Como seria bonito esse filho se porventura nascesse com os olhos do pai, não os dela que eram serenos e claros demais. Poderia ver a boca breve do filho que, como a dela, ficaria arroxeada no inverno.

Mas... a pomba.

A pomba era a doação mais límpida e, em seu recolhimento, a moça estava impedida de explicar isso. De um lado, recebendo a graça última, a pomba se fechava em duas asas. De outro lado, presa pelos pés, a moça encontrava seu lugar no mundo: o chão como ponto de espera. Era a graça dum dia sobre seu peso. Era o caminhar e o sacudir de folhas na atmosfera. Esguia demais para um vestido tão branco – secretamente um vestido que não nascera para ela e que balançava – a moça pensou que pudesse amar o trabalho tão severamente como amava em ódio àquela pomba viva.

Ela nascera para isto: para dar o seu seio à humanidade.

Levantou-se, e devagar se aproximou, dando passos leves e receosos. Por um segundo parou porque a pomba tinha piscado o olho direito e levantado um pouco as asas. Mas era preciso mais que isso, ela pensou. Era preciso chamar a pomba de filha e dar-lhe um caminho de amor. Deu mais um passo, quando percebeu que uma nódua esverdeada nascia por debaixo da pomba. E sim, ó coitadinha!, ela estava doente porque comera porcaria. Doou-se à pompa, tocou-lhe a ca-beça e a abençoou como os pais abençoam os filhos por toda a vida. Obstinada, a pomba se retesou, ofuscando os olhos por rápidos segundos, deixando sua mãe tão contente.

E então, amedrontada e cheia de amor, a moça se precipitou. Pegou o animal fofo e branco e o levou para fora, deixando-o na margem entre o passeio e a rua. A pomba abriu levemente as asas e trotou contente sobre os paralelepípedos do chão umas duas ou três vezes, antes de ter sido atropelada por um automóvel.

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