quarta-feira, 19 de maio de 2010

As falhas de Olívia


Sabíamos com certo desgosto que não haveria festa na casa do tio Érico, e para esquecermos o fato constrangedor de estarmos com roupas novas sem necessidade, entramos numa circunspecção que nos levava ao cansaço, pois estávamos fartos. A essa altura, vovó já tinha nos chamado inúmeras vezes para comermos de seu pudim, o mesmo que seria levado à casa de tio Érico caso tivesse a festa, para que ela, vovó, cumprisse a importante tarefa de ser primeira-mãe no aniversário de Olívia. Não é que Olívia fosse criança para comemorar o dia de seu nascimento com bolo e “parabéns pra você” e, ao oposto disso, adulta que era, possuía até emprego de secretária. Mas é que em certas famílias comemorar aniversário é questão vital. Ao passo de dois meses comemoraríamos os noventa anos de vovó.

Qualquer lembrança a respeito de Olívia cai no constrangimento de que possuía olheiras, lábios roxos e estreitos, além de sardas que lhe davam ar de alimento fora da validade. Era dessas mulheres que, grandes e brancas, comem pão seco de manhã porque simplesmente não se lembram que na geladeira há geléia ou manteiga. E, de manhã, com a ausência estranha de geléia ou manteiga no pão de Olívia, eu, calado, a olhava, desconfiado que meu silêncio de criança pudesse aborrecê-la.

Aquela mulher eu não compreendia. Tento falar sobre seus sustos que eu, sob o espanto dela, percebia numa avidez de criança esperta que não poderia supor que sua existência infantil destruísse os sonhos de Olívia ser livre. É que meus olhos inquisidores procuravam em Olívia os defeitos que mamãe não possuía, e encontrando-os, eu logo dava um jeito de dizê-la; e esta era a única ligação que nos mantinha numa tensão de experiência. Certa vez invadindo o quarto de Olívia eu a vi sentada na cama lendo e fumando ainda de pijamas. Passaram-se minutos até que ela percebesse a minha presença, sentado no banquinho, de pernas cruzadas, vendo os seus defeitos.

— Que foi?, ela perguntou amedrontada.
— É que ninguém fica de pijamas até às onze da manhã.
— É que eu acordei agora e ainda nem as cortinas abri...

E porque também ninguém fica num cômodo de cortinas fechadas pela manhã de sol, eu a olhei em desaprovação e saí do quarto. Eu sabia que Olívia sofria e aprendia comigo, porque no outro dia ela já lia de cortinas abertas e estava vestida impecavelmente como que indo a uma festa, e para seu desgosto, eu via que tudo estava a meu modo. Ela me olhava perplexa. Acontece que tudo estava a meu modo exceto pelo fato de ela estar vestida como que indo a uma missa de domingo. Ela estava confusa...

— O quê?
— Vai a algum lugar?
— Eu?
— É, você.
— Eu não.

E para que ela não esquecesse que sempre estava errada, eu a fitava de cima abaixo, medindo o vestido escarlate no seu corpo branco que deixava à mostra os braços e as pernas. E então, dava um sorriso que soava como um “você não aprende nada”, e não dizendo qualquer palavra ofensiva, desde que a ofensa já tinha sido expressa com êxito, me punha ao lado dela, atordoando-a com minha muda presença. E não ia embora nunca mais, porque eu gostava de Olívia e gostava, por meio de um sentimento ávido que se chamava amor, de me tornar presente na vida dela ensinado-a a viver; eu era a exata constância de Olívia, a rotina necessária para que ela não cometesse, por exemplo, um suicídio ou se tornasse, para aliviar a tensão de ser uma mulher solitária, a responsável pela morte de alguém. Eu era assustadoramente a única chance de Olívia ser melhor e ela, para não errar mais, ouvia-me com atenção embora fingisse não me dar ouvidos porque lia algo urgente enquanto eu a ensinava. Mas ela não lia nada. Seus olhos, desde sempre, estavam presos no mesmo ponto e sua boca, mais roxa que o natural, se contraía de tanto pavor porque eu sabia demais sobre ela.

Será que eu estava sendo o pecado impossível que aquela mulher nunca tivera? É que uma vez, como a veemência de um pecado brutal, eu a fizera chorar sem querer. Eu descobrira que Olívia estava amando um moço seu vizinho. E então descobrindo seu íntimo eu disse aparvalhado:

— ... mas é que você não sabe namorar.

Alguma coisa incômoda me descompusera. Alguma coisa com a força dum ciúme. Pois Olívia, sendo minha, não poderia ser de mais ninguém, e eu então me desequilibrara um pouco para poder me aproximar da falta que Olívia me fazia. E eu estava tão aturdido que ela, percebendo, deu um sorriso que eu não suportei em não acompanhar. Rimo-nos os dois, pois o que eu dissera era uma coisa impossível e ela sabia que eu, pela primeira vez, errara. Só que eu não errara completamente..., eu apenas tivera um estrabismo de pensamento. Quando percebemos juntos que eu estava de certo modo correto, ela teve o rosto ruborizado e ficou calada até que eu fosse embora e ela pudesse chorar sozinha. Na verdade, sem saber lidar com os fatos, eu queria salvar aquela mulher que eu amava. Eu queria, na coincidência de participarmos do mesmo clã, acompanhá-la para sempre — coisa de sangue coagulando dentro de corpos irmãos — para de algum modo eu ser regado e crescer dentre os meus. E Olívia também me queria e amava minha arrogância de criança sabida... Uma vez, eu disse a ela que não voltaria mais ao seu quarto para ensinar-lhe as coisas e ela, apavorada e com o coração batendo, disse que eu não fizesse isso. Voltei no outro dia depois do café da tarde.

E nunca soube de fato quando encontrei Olívia pela primeira vez, da mesma forma que eu não sei do primeiro momento em que eu tomei consciência de que tio Érico era pai de Olívia — o que os ligava de uma forma incompreensível: da mesma forma que eu era ligado à mamãe, da mesma forma que os homens são ligados a outros por matéria de sangue — eu não compreendia. Só me restava a ciência muda de ser um agente: isso eles quiseram de mim. Acontece que, ao passo de uma nova civilização, onde todos eram vesgos, Olívia era a minha maior dificuldade em enxergar; e passei de repente a chamá-la, quando ela não estava por perto, de Miopia. Eu era a criança errada porque desde cedo eu questionava e não compreendia, questionava e não compreendia, questionava e não compreendia, etc., etc., etc. Realmente, dentro de minha ciência, eu sempre quisera ser a criança certa e nunca, nunca um agente, o que eles quiseram que eu fosse sem meu consentimento. Eu não era inteligente como Olívia dizia, eu apenas nascera para incomodá-la, porque essa era a forma que encontrei para ser aceito por ela, e uma vez vendo que tudo saíra como planos de um astuto agente, eu mergulhava na minha nova forma de amar.

Eu quisera interrogar Olívia? eu me pergunto sabendo que, acima de tudo, eu não podia interrogá-la. Eu nem podia tocá-la por vergonha e medo. E eu — eu estava assustado, porque já a atingia de modo torturante, mas por amor àquela mulher que vivia estranhamente.

É que Olívia recebia chamados. À noite, ela se dava ao que não podia suportar: a uma palidez veemente de lua. E de rosto pálido, debruçada sobre a janela, ela se transformava na mulher que trabalharia no dia seguinte. Não, eu estava enganado: depois de muito tempo é que me dei conta que Olívia não tinha mais emprego.

Se eu ficava enfim aliviado era por uma esperança futura de que eu não tinha relação com a falta de trabalho que Olívia possuía na vida. E por ser bonachão. Ela se dedicara e ser a sua própria falha. O laço torno na cabeça da criança. E nada ou ninguém poderia estar à sua frente. Eu estava à sua frente? Eu era muito impossível para ela, logo essa impossibilidade disturbada de ser água em deserto para regar em minha obstinada incredibilidade. Se eu a conhecia era por pura letargia muda e seca que posteriormente entendi, numa espécie de chamado, como sendo uma paixão. Não que eu quisera ser o homem futuro de Olívia, é de outra paixão que falo. E minhas mãos se esgalharam porque eu estava sendo a sua futura morte. Dez anos depois, sozinho em meu apartamento, recebi por telefone a notícia sobre a morte súbita de Olívia. E de pé, eu perdia minha compostura, todo quebrado e pálido. Meus olhos abertos, meu coração batendo: ela então sempre estivera apostando em mim? o fato de sua morte fora uma mensagem. Uma continuação, um beijo? Eu havia perdido a chance de salvá-la, o que me levou ao meu primeiro erro depois de anos vivendo. Muito branco, como um filho órfão de Olívia, eu não possuía coragem para acreditar em mim mesmo: ela me ensinara algo.

O fato é que dez anos antes eu me sentara com minha roupa nova à guisa de esperar... por ela? Seu corpo grande e branco me comovia. Então se eu lutava inconscientemente pela sua presença, eu lutava também para sentir a angústia de não poder sujá-la de minha desbotada intenção em ultrapassá-la? Eu não queria nada, porque lacônico em minha arrogância, eu esperava. Contido e malvado. Em resposta a todo amor que eu lhe dedicava ela me retribuía com ódio. Somente pelo fato de não me querer por perto. Mas eu me reerguia como um cavalo após a queda: limpo e probo. E dava passos ao seu encontro. Seria isso? Não me recordo mais.

Mas da poeira eu sempre me esquivava. Da poeira eu sempre saía para de novo aceitar uma vida. E para esporadicamente ver Olívia na praça dando grãos aos pombos desde sempre. Quando ela enfim soube que seu segredo estava descoberto, nunca mais foi a praça digna de pombos a que dar qualquer grão. Suas praças passaram a ser tão limpas de extrema doçura. E ela passou a sofrer de minha falta, pois em praça intensamente limpa eu, ressaltado em minhas inatingíveis ânsias por complexidade, jamais poderia pisar. Ânsias?! É que as praças de Olívia pareciam não ter um fim. E eu me perderia em meio àquelas árvores grandes demais. Tudo era longe e enorme. A relva se estendia fria.

Quanto ao aniversário, debaixo de alta vigília e olhos abertos demais, Olívia não comparecera. A agravante de tudo é que não aparecera nos seguintes cinco dias. E quando, por fim, mais branca que antes, de lábios realmente muito roxos, ela surgiu empurrada pela luz da porta, seguiu calada para o quarto e lá ficou durante mais cinco dias sem entrar em contato com o mundo. Exceto à noite quando abria a janela. Aí ela se comunicava com a lua que também era branca.

Não me lembro bem quando parei de importuná-la. Acho que foi quando ela disse com um sorriso curioso nos olhos e uma boca de morta:

Eu acho você um menino muito estranho.
Eu?
Você é tão engraçado que parece meu filho.

Ela me insultara. E me insultara com a coragem que eu nunca possuí. Ela me empurrara para o inferno de não compreensão, dera-me a verdade que eu não suportava por não entender os adultos. Ela me colocara no seu patamar de idiotice. Desanimado e fingindo achar graça, eu lhe disse:


"O quê?"

Ela sabia demais..., ela estava perto demais da verdade. Então, fechei os olhos com força, o coração acelerado. Eu estava sendo o primeiro homem daquela mulher e ela me amava? Parado, com uma gota de suor descendo o pescoço, eu me fizera todo angústia e dor. Para minha inopinada tortura, sem me desfitar, ela pôs a mão no meu ombro e sua mão pousou como uma grande ave pesada. Eu senti a força mítica daquela mulher, eu senti sua energia-malsã, e seus olhos eram bons demais para que pudesse suportar. E, então, ela falou embargada:

Quem ensinou a você todas as coisas?
... ora, ninguém..., respondi.
Então, ela disse, então está bom.
O que está bom?
Isso.

Por um minuto ela fingiu me esquecer e passou os olhos pelas páginas dum livro. Então, porque era a minha chance de fugir e gritar de tanto pavor, eu terminei por colocar-me à prova de, pela primeira vez, sair ofendido.

Eu preciso ir agora.
Você quer ir embora?
Eu posso?
Se você quiser...
Então, então eu vou.

Ele é apenas um menino, apenas um menino, ela pensou quando saí? Eu estava confuso demais, eu estava importunado e sem entender. Mas, como agente, eu buscava uma resposta que só não poderia ser muito rápida porque eu corria em direção ao infinito, a mão cobrindo a boca, a rua se alargando, sem nunca ter fim... correndo. Até que meus passos foram se atenuando, e sem querer me agarrei a uma árvore que eu nunca tinha visto. Olívia a pusera ali para que eu, enfim, fraquejasse? Olívia. Não... estava sendo demais. Pus-me a correr de novo para o fim inexistente, entre praças e vultos.

(2002)

Um comentário:

Fabrício Tavares disse...

Excelente conto! O esgarçar do véu que vela o íntimo dos personagens faz relembrar a escrita de Clarice.