quarta-feira, 19 de maio de 2010

Entre estranhos (primeira parte)

(Quadro "Operários" - Tarsila do Amaral)

Frância parou um pouco para respirar. Sôfrega e um pouco irritada parecia não compreender que o apartamento conseguinte ao seu estava sendo ocupado. Saiu à porta inúmeras vezes, procurando ver seu novo vizinho, o que fora mais esperto que Ângela. Depois do almoço, sem sequer mudar de roupas, ligaria para a amiga a modo de dizer-lhe que já era tarde, que ela procurasse outro lugar nos anúncios dos jornais. Havia lugares baratos e cômodos ao norte dali. Por mais uma vez, ladeada pela curiosidade, abriu a porta e, como um lobo esperto, ziguezagueou os olhos sobre o cinza-pálido dos corredores à luz meã, onde portas trancavam desconhecidos. Ouvindo passos vindos de um andar abaixo, fechou rapidamente a porta sob o desespero de seu coração que batia em qualquer veemência. Ela suava um pouco porque descobriu que sua atitude fora ridícula a uma mulher que possuía mais de cinqüenta anos. Recompôs-se, encostou-se à porta e olhou para o seu apartamento sob a desordem de uma tristonha manhã de domingo. Eu me tergiverso, pensou engranzando a mão pelos cabelos. De inopino se reergueu e atravessou a sala para chagar à cozinha. Lá se sentou e comeu. A carne estava um pouco dura, porque que sua empregada nunca sabia fazer carne macia. Frância pensava que comer aquela carne morna e dura era como morder um cadáver.

Depois do almoço ligaria, como havia desejado antes, ligaria para Ângela? Talvez se Ângela fosse pega de surpresa aprenderia a lição com certa intensidade. Frância decidiu então não ligar para Ângela para que ela soubesse por conta própria sobre a ocupação repentina do apartamento.

Não ligaria, então.

Levantou-se orgulhosa e fitou a cozinha cingida por uma claridade débil. Uma cozinha que parecia um rosto disforme e esbranquiçado pelo pó-de-arroz. Frância achou essa a comparação engraçada, e, vendo um pombo que rulhava sobre um prédio menor, simulou um sorriso de meia boca. Agora, a uma distância existente apenas pelo fogão que a empurrava contra a janela, ela olhava o império silencioso: a cidade sem habitantes. Mas por que colocaram o fogão logo defronte à janela? Tudo se desguarne-cia em mobília. Tudo no apartamento tinha um rubor de mobília que sufocava. Eram sombras e umidades.

Foi, então, que teve uma súbita e perigosa idéia: bateria à porta do vizinho novo. Mas à guisa de quê? Agiria por impulso e erraria, seria desfocada pela vergonha? Há muito não conversava com ninguém. Fosse como fosse, essa seria a sua maior desculpa, cuja veracidade a livraria de qualquer castigo. Erguida, com um vestido de pequenas flores tão pálidas que nem apareciam, ela acendeu um cigarro para preludiar um futuro. Ou seria para adiá-lo? Pensar no que faria era a única forma de despistar a tristeza daquele domingo que lhe dava um arrepio por dentro quando abria um pouco a boca e o ar entrava. Seria, então, criar um ato que fugisse do cotidiano? Estava sendo um domingo de um azul desmaiado e quase europeu. Frância se requintava duma suposta alegria, pois, em pensamento, fumava cigarros em Liverpool depois de comer boa carne. Seu corpo, tão magro e seco, colado a um vestido velho e descorado, recebia os ares do que nunca possuíra. As coisas se mortificavam quietas, pálidas, existiam num tênue frescor. Ela vivia uma graça tão lépida que passaria após o cigarro. Movimentou um pouco as pernas, viu as contas em cima da mesa. As pagaria quando pudesse. Terminou o cigarro e, inerte, teve uma sensa-ção passageira de angústia. Fechou lentamente os olhos e, suspendendo o sobrolho, afastou qualquer espécie de preocupação que a pudesse deixar atormentada. Levantou-se enfim. Cumpriria o que decididamente pensa-ra? Seria talvez ir longe demais. Certificou-se da hora. Era pouco mais de onze da manhã. Almoçava cedo, não? Estava toda longa como uma árvore, uma grande cumeeira. Assustou-se. Cumeeira?!, disse Frância para si como que questionado o filho que nunca teve. Ela poderia ter tido um filho se quisesse; não teve por vontade própria, pensava muito orgulhosa, levantando o rosto sem profundas rugas. E sua imagem era a de uma mulher madura, de rosto rijo como talho de madeira. Parada, defronte aos móveis escuros da sala, Frância tomava pose altiva de dona, o que soava antiquado demais. E finalmente, tomada pela letargia, estava diante dum corredor. Não, não o corredor do edifício; o corredor que caía no banheiro de seu próprio apartamento.




Gil Fedrosa morava ao lado de Frância já fazia um mês — desde que se mudara de seu antigo apartamento — e nunca a encontrou para toma-rem café juntas. Eram, de certo modo, desconhecidas. Somente algumas esporádicas vezes, nenhuma sobre grande apreciação, Gil pôde ver Frância passando sorrateiramente, entrando e batendo a porta de seu apartamento, enquanto ela saía para fazer compras ou ir ao balé.

...Acima de tudo, fazia uma manhã especial e Gil olhava pela janela. Ela gostava de olhar o tempo. Não que fosse um tempo ideal, mas especial, ela acreditava. E parada, de cotovelos encostados ao vão, as mãos apoiando o queixo tão anguloso, ela, enfim, pôde se lembrar do sonho que tivera. Pensava que talvez ninguém a acreditasse se acaso contasse esse sonho. A quem contar? Então, pegando a correspondência que recebera mais cedo, sentiu uma alegria. Enfim, mostraria seu trabalho em São Paulo. Gil estava mesmo orgulhosa quando ao reler a correspondência, assinada de modo imperceptível, o motor estridente dum auto a atrapalhou. Ela levantou os olhos. Queria poder sair nesta manhã e tomar um café em algum lugar. Talvez na casa de Frância? Certo é que ela nem sabia ainda que Frância se chamava Frância. Mas lhe doía a inexistência de uma comunicação. Desde que se mudou não entrou em contato com ninguém, e isso lhe parecia grave demais a uma artista. Não, não podia ser. Ao longe, no final da rua deserta e cinza, parecia surgir um ponto negro. Esse ponto foi aumentando, aumentando, quando Gil pôde ver que não se tratava dum ponto, mas de dois, que se chocavam. E os pontos tomaram forma humana e conversavam intensamente, enquanto a mão de um tocava o ombro do outro. Ela, então, saiu da janela, e se virando, viu a ausência duma família naquele apartamento de cômodos largos. Era realmente um apartamento grande que ela ainda não tomara posse completamente. Essas paredes são minhas, ela pensava às vezes, em transe. Em especial, um cômodo inacabado chamou por Gil; ela caminhou a esse chamado. Luzes pálidas desciam e caíam aqui e acolá. Em outros pontos, uma sombra ou um azul imperfeito como o enxoval dum bebê, dançavam numa eloqüência. Do cômodo, o que exilava a voz, veio cores que batiam graves na parede do corredor. Seria a luz?, pensava, enquanto andava descofiadíssima. Seus passos se adiantavam numa velocidade fictícia parecida a que, de certo modo, a movimentava no sonho que tivera, balançando-a um pouco, estalando-a a centímetros do chão. Sem perceber, estava Gil à porta do cômodo oscilando entre entrar e não entrar. Por ser impossível não entrar, entrou.

Já dentro, olhando dois de seus quadros na parede — um de traços fortes demais e outro a um lilás quase enfermo — ela se deu conta que estava no ateliê que improvisou dentro de seu apartamento. As cores a torturavam e depois, alheias e tristes, a ninavam; ela era — assustou-se a este pensamento —: ela era uma defunta em meio aos vivos. Arredou o corpo, deu uma volta que parecia uma antecipação e sem esperar, cravou os olhos no quadro inacabado sobre o tripé. O quadro, em contraste com os demais e com a própria dona, se diferenciava: era um morto-vivo. Um meio-termo. Enfim livre, ela se aproximou do quadro. Viu um homem que caminhava num deserto. Ao lado dele uma bolsa caída. O homem, que Gil chamou de A., era magro demais e tinha a pele um tanto parda de sol. A. ainda não tinha rosto. Ao passo disso, um borrão branco pousara sobre sua face, tampando, assim, sua personalidade que Gil não podia imaginar. Como terminar esse quadro se eu não conheço o homem? Ele devia ter boca seca, lábios secos, e coração seco, uma necrose talvez. Então, deu uma olhadela nos quadros dispostos no cômodo, e percebeu que pouco sabia sobre todos eles. Ela não os criara; Gil estava sendo a passagem entre alguém que ela não conhecia e o mundo. Assustada, sentou-se. De inopino apanhou o pincel e se adiantou ao quadro, borrando-o todo de negro. O homem seco do deserto havia desaparecido..., mas sua bolsa continuava murcha sobre o chão. Passou pela cabeça de Gil erguer a mão e num jorro de tinta apagar a bolsa de A., mas pensou que talvez um dia, quando tivesse um rosto, ele quisesse voltar e apanhar seus pertences. A. estava coberto por um negror de morte, mas seu rosto se multiplicava. Ela deu com rosto dele noutro quadro: um rosto de duros ossos e uma cabeça muito grande. Gil se desviou, pôs a mão na cintura e saiu.

Decididamente ela iria ao apartamento da vizinha. Decididamente. E lá batendo e ao vê-la abrindo a porta diria: — Você pode me dar um minuto? A outra responderia: — Sim, é claro. Entre por favor. — Que não seja incômodo demais... Como está quente lá fora, não? — É verdade, mas aceita um pouco de café? — Sim, será um prazer. A seqüência de como seria o suposto entrosamento necessário com a vizinha foi interrompida pelo chamar do telefone. Gil correu até a sala e atendeu:

— Alô. Sim, sim é claro. Você vem? Naturalmente... Minhas coisas já estarão arrumadas, Jorge. Sim, sim. Como? Poderá ser às nove horas da próxima segunda-feira. Está perfeito, então. Tchau.

Gil pôs o telefone no gancho, estirando-se um pouco e elevando os braços. Uf!, suspirou. Ainda não tinha feito os afazeres necessários para que pudesse ir à São Paulo na semana que viria. Precisava organizar uma lista do que levar, o que fazer, como se portar, talvez. Ergueu-se rapidamente para apanhar um lápis, mas oscilando um pouco, as pernas indo e vindo, ela parou. É que ela tinha bastante tempo para fazer isso; precisava agora organizar coisas mais urgentes. O quê? Haveria alguma coisa, alguma coisa que ela agora não percebia, mas que precisava duma organização? E, olhando o apartamento de cima a baixo, percebeu que a empregada ainda não viera. Encarou o relógio, faltava pouco para as dez. Afinal, o que aconteceu? Sorriu. Era um alívio estar sozinha e não ver o rosto preto da empregada. Aquele vestido escuro a deixava cada vez mais ofuscada e distorcida. Vez por vez, ela sentia estar sendo vigiada por aquela mulher que ela nem conhecia bem. Mas quando finalmente, sob o impulso do coração que batia assustado ela, um pouco apavorada, se voltava, a mulher estava sorvida pelos afazeres, lavando paredes, purificando com baldes e baldes de água. A verdade, é que impossível era o fato de elas nunca terem se falado. A empregada cumpria tudo num silêncio absoluto de lua.

Foi até à mesinha e pegou para si uma dose de uísque. Sentou-se, fumou um cigarro. Frida Neves, a escritora, poderia chegar a qualquer momento. Ela mal se esquivou do último pensamento quando bateram à porta. Era Frida e estava bonita como sempre. Aqueles cabelos ruivos a deixavam tão quente que, inteira de calor, pôde espantar o frescor de Gil. Era uma luminescência. Frida possuía uma languidez quase impossível.

— Frida, querida, entre — disse Gil se antecipando para beijá-la. — Estava mesmo pensando o quanto me sinto sozinha e você chegou... Nós artistas não podemos ficar tão sós, Frida.

Ela estava louca?

— Você tem razão...

Ah, como era fascinante aquela manhã preparada para a arte! E como respirar o ar era aceitar um frescor necessário às duas. Frida sorria um pouco, porque estava inspiradíssima. Gil elevava o copo de uísque e o servia, agilmente, à amiga. Elas, enfim, se reconheciam agora: as artistas, uma diante da outra. É claro, Frida Neves um pouco de lado, porque assim ficava mais graciosa, da mesma forma que também assim o ficava quando, se movendo a alguma distância, ela punha uma das mãos na coxa para se guiar melhor. Gil ofereceu-lhe um cigarro e ela respondeu meneando a cabeça:

— Obrigada.

O ateliê estava pronto? Frida queria panos escarlates envoltos ao corpo, mas seria melhor que ela se deixasse pintar apenas de rosto, era a sua graça.

— Vamos? — disse Gil.

Atravessar aquele apartamento era para Frida como atravessar o Mar Vermelho. Ela erguia demais as sobrancelhas, sem conhecer o espaço. Tratava-se de um apartamento bem limpo, de cômodos que se desencadeavam noutros, e outros que caíam noutros. Mas isso não era natural? Frida pensava que não. Tudo ali tinha a graça dum véu róseo, o que a deixava encantada e um pouco bêbada. Só depois percebera que o uísque tinha sido insuficiente para deixá-la bamba. O que a deixava assim eram os olhos de Gil? Seus calcanhares, um pouco elevados, nunca tocavam o chão. Ela tentava compreender.

Rápido foi o olhar de Gil sobre o ateliê. Ele estava arrumado com caracóis de panos escarlates a um canto. E lá estava, cravado há séculos, o tripé abraçando a tela virgem. Gil guiou Frida até ao assento.


— Assim não..., aconselhou trazendo Frida mais para a direita.

E completou antes que Frida falasse:

— Piiss... Piiss... Fique quieta.

A tela virgem ganhou o primeiro traço, e ele percorreu um longo caminho encurvado. Este traço era tão forte que Gil pensou ter agido de modo muito categórico. Mas não, a expressão exata era esta: a agudez que representasse a silhueta de Frida, cuja uma das mãos desmaiada estava sobre o sofá e a outra, engendrada pelo braço que se encostava à estofa, segurava levemente o queixo. Qualquer felicidade havia nesse rosto, mas não uma felicidade intensa, uma felicidade contínua. Frida era como a primavera. E seus olhos eram grandes espelhos nus. Outro traço duro numa quebra necessária. E outro, e outro. E depois, elevando o braço e se pondo a um passo do tripé, Gil cobriu uma outra parte do quadro com qualquer cor indefinível. Agora existiam duas Fridas, ou uma apenas que se multiplicara? Gil era o estereótipo e a evidência. Silenciosa, apenas a mão ainda elevada como se ela fosse uma estátua, ela viu Frida tão serena que teve inveja. Já a Frida, tudo o mais que pudesse sentir não passava de amor. Ela amava Gil.

— Que há? — perguntou Frida.
— Já terminei — respondeu.

Frida se ergueu e viu o quadro.

— Oh! — e esse “oh!” tinha sido de espanto.

Mas não era isso o que Frida queria dizer. Ela abraçou e apertou sua cabeça contra os seios de Gil, sem coragem para perguntar: “Eu sou isso?”

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