quarta-feira, 19 de maio de 2010

Entre estranhos (terceira parte)

Quando os Algrave colocaram Jane e Geórgia no banco traseiro do auto, elas se sacudiram um pouco. Vestidas de renda e laços róseos na cabeça, tinham rostinhos castiços, embora Geórgia fosse mais grave que a irmã, quando a víamos de perto. Impossível dizer, sobretudo, qual delas era a mais velha, porque possuíam a mesma estatura física e até suas vozes eram parecidas. Mas Jane era um ano mais vivida que Geórgia, o que não a deixava com obrigação alguma de ser mais tranqüila. Ao oposto disso, Jane era mais difícil que a irmã em tudo, podia-se dizer. Principalmente quando os Algrave tinham de dar comida às meninas. Geórgia nascera para comer e, é claro, por isso, em segredo, Fátima Algrave a amava mais. Não é que esta mãe não amasse Jane, isto podia ser equívoco; mas é que Jane já era muito amada pelo pai. Os Algrave eram uma família de ruivos e sardentos. Tinham corpos grandes e saudáveis demais.

Podemos ir? — perguntou Fátima às meninas e elas sacudiram as cabeças. — Podemos ir, então — repetiu para o marido.

Arthur Algrave deu partida e o auto rolou de encontro à estrada.

O pneu tocava o chão e depois não tocava mais, assim em átimos de tempo... As meninas sempre cantavam Ô dia azul.

— Piiss... — censurou Fátima Algrave — Vocês duas vão tirar a atenção do papai.

E elas fizeram silêncio porque tinham medo de acidente. Especialmente Geórgia que tinha os olhos muito arregalados agora.

Mamãe, você não acha que Geórgia tem uns olhos muito grandes? Maiores que o natural? — perguntou Jane erguendo-se um pouco para que sua cabeça alcançasse o encosto da poltrona da frente.
— Não, querida, sua irmã tem olhos normais. Os olhos dela são bonitos como os seus.

Geórgia mostrou língua para Jane que começou uma risada que nunca mais tinha fim.

— Que há, Jane? — disse Arthur fazendo uma manobra com o volante.
Nada, papai. É que Geórgia hoje está muito engraçada.
Então pare de amolar sua irmã, querida.
Está bem, papai — respondeu contrariada.

Os passeios dos Algrave com as filhas eram curtos demais, porque Geórgia sempre se cansava e ficava irritada. Desse modo, era sempre necessário que não passassem muito tempo fora de casa, o que nem sempre era tão ruim. Mas Jane, de contínuo, reclamava e voltava para a casa redargüindo muito e fazendo bicos enormes com a boca. Essas irmãs em muito se diferenciavam, porque seus gênios eram opostos. Se Geórgia, no jardim — que a ela parecia nunca ter um fim definido — dava petiscos aos pombos, Jane os espantava logo para vê-los voando, de asas abertas. Os pombos nunca seriam de Geórgia enquanto Jane estivesse por perto. Com o tempo eles pararam de rodear Geórgia, já que ela estava sempre acompanhada por Jane. Quando Arthur Algrave percebeu o que acontecia era tarde demais. Mesmo que ele entretece Jane, os pombos deixavam Geórgia sozinha, chamando por eles.

Não os chame Geórgia! Deixe que eles venham por conta própria — aconselhava Fátima escondia atrás dos óculos de sol.

Mas eles nunca vinham.

As meninas estavam grandes, segundo um velho conhecido dos Algrave que agora passava por eles na praça. Decerto os Algrave não achavam isso, porque olhavam para as filhas com alguma desconfiança, embora sempre concordassem, por educação, quando as pessoas diziam que as meninas tinham crescido demais no último mês. — Ah sim, elas estão enormes. — A gente nem percebe e elas já estão namorando, não é? — As crianças estão crescidas mesmo. — Geórgia é um amor, mas Jane tem a personalidade da mãe... E... como estão grandes, não? Ah sim, elas estão grandíssimas. — Na verdade, Arthur pensava que a proteção dos pais aos filhos surgia como encargo ou tarefa que depois se tornava difícil renunciar. Admitir o crescimento de Geórgia e Jane era para ele beber de uma taça amarga do futuro, perdendo-as pouco a pouco, a cada centímetro. Já à Fátima Algrave, cuja natureza era mais fincada à realidade e à facilidade, era muito normal os filhos crescerem, porém Geórgia e Jane não tinham crescido tanto a ponto de estranhos notarem isso de um mês a outro. É claro, ela também preferia que as meninas ficassem crianças a vida toda, mas este desejo não era tão ávido quanto o de Arthur, cuja uma das mãos segurava Jane e a outra apontava um pombo que descia na outra quadra, para que Geórgia se aproximasse dele.

Depois de anos é que Geórgia e Jane, já moças, conversaram sobre os passeios no parque.

...Os Algrave, depois do passeio com as meninas, voltavam para casa. Elas estavam uma ao lado da outra e eram fisicamente muito parecidas. Mas Jane tinha uns olhos solertes, enquanto os da irmã eram indecisos, e talvez isso as individualizaria para o resto de suas vidas. Acontece que não era apenas isso que as diferenciaria. Havia milhares de situações onde Jane seria mais astuta, ao passo que Geórgia nunca saberia lidar sozinha com os tropeços naturais da vida, ou sequer agir debaixo de uma certeza ou intensidade. Inúmeras situações onde Geórgia seria mais amável e Jane agiria com mais secura. Várias circunstâncias as distanciariam, e apesar de tudo, nunca cortariam quaisquer contados. Isso tudo previa Arthur Algrave olhando-as de modo apaixonado, enquanto a esposa, vagando pela sala do apartamento, conversava com a nova empregada. — ... sim, é claro, as batatas primeiro, minha querida, eu já supunha. Só depois a carne, que deverá ser muito bem cozida, porque Geórgia tem um estômago fraco... — As vozes iam sumindo enquanto ele reconhecia as filhas, uma ao lado da outra. E depois as levaria para a cama, porque estariam cansadas; mas isso só de noitinha. Tiraria ele próprio as botinhas de abotoar de Jane; colocaria as pantufas amarelas ao pé da cama de Geórgia; apagaria os abajures e diria: — Rezem pra dormir, queridinhas... Piiss... Rezem pra dormir...





Quando o estranho se aproximou do bando, os trabalhadores acharam que ele ficaria parado, sem nada dizer, a observar apenas. Mas depois de algum tempo, o estrangeiro levantou uma das mãos e perguntou assim:

— Como faço para falar com Doutor Almeida?

Para desgosto do estranho — que se chamava Felipe, e nunca perguntava o nome de ninguém por falta de interesse — os trabalhadores riram um pouco antes que um deles, o mais gordo por sinal, dissesse, sem descer do andaime, que o senhor a que ele procurava já tinha morrido.

Então, uma densa lufa de risos se ecoou entrando pela construção e perpetuando sobre a atmosfera quente, que provocava peso nas cabeças.

Felipe deu as costas ao bando, mas de repente se virou.

— E o Doutor Carvalho?
— Ele se mudou há pouco... e completou o homem: — Se quer mesmo falar com um médico deve procurar o Doutor Fortes. A casa dele é bem ali, depois daquele trailer.

Parecia que o trailer não estava assim tão próximo ou ele estava enganado pela miopia? Não que fosse tão míope assim, mas é que desde quando passara a estudar durante a noite, sob a luz fraca dum abajur, ele notava a vista um pouco turva, esfumaçada. Mas era preciso continuar estudando à noite, que assim tinha a companhia do silêncio. E às vezes até dormia em profunda satisfação, e quando acordava pensava rapidamente antes que saísse do transe: — O nada também dorme sobre o peso duma escuridão. — Ele, então, numa agilidade engraçada, pegava seus óculos pondo-os sobre a cara para ver pela janela a mesma árvore que via todas as manhãs, nessa mesma hora. Se antes as folhas não passavam duma massa inteiramente verde, depois, com o apoio dos ósculos, essas mesmas folhas possuíam propriedades inacreditáveis. Era como se ele começasse, de fato, a saber das coisas vivas.

Enquanto andava parecia um pouco triste. Sua cabeça não estava tão erguida e suas mãos se engrazavam suadas. Ele prestava atenção no seu coração que batia. Mas mortificou-se ao passo que uma moça, nem tão bonita nem tão feia, cruzava seu caminho. Ele a viu; era T., sua antiga namorada. A moça deu-lhe um cumprimento insignificante, apenas um aceno de cabeça e um sorriso meio encanecido. Ela tinha uma esperança vetusta no olhar, achava Felipe. Será que ela ainda o amava? Era possível. T., ainda magra, apesar das vitaminas que tomava para ganhar massa, adiantou-se e sumiu de vista.

Foi quando percebeu que estava ficando tarde.

Apertou a campainha no lugar indicado.

— Que é? — disse a voz que vinha de dentro.
Preciso falar-lhe...
O quê?
— Preciso falar-lhe! — respondeu Felipe um pouco impaciente.

O homem abriu a porta; ele tinha um cigarro entre os dedos, além de ser calvo e bastante velho. Seu rosto antigo sofreu uma pequena mutação. Mas uma mutação superficial e leve como pluma sobre água. Ele era o médico.

— Que é?
— É mamãe.
— Quem?
— Mamãe está passando mal.

Doutor Fortes abriu completamente a porta e vendo que era Felipe, filho de Maria , deu uma risada que lhe sujou a cara de rugas.

— Volte para sua casa e ela já estará boa.
— Como?
— Faça o que lhe disse e não me atormente mais. — disse o médico.

Felipe ficou por segundos ali parado antes de voltar para o apartamento e ver que realmente a mãe já estava completamente regenerada, andando vivamente de um lado para o outro, aguardando-o com impaciência. A Felipe, era ainda difícil distinguir quem era o louco daquela casa, ele ou a mãe. Ela lhe dizia: — Coma feijão, Felipe, que mamãe, sua avó, morreu com ossos fracos como cascas de ovos. Se quiser assim, faça bom proveito! Fique com suas casquinhas de ovos, que os médicos já disseram que feijão é bom por causa do ferro. — E às vezes, enquanto ele escrevia seus contos, que nunca viria a publicar, ela aparecia nas suas costas para atormentar-lhe as idéias com aqueles assuntos que podiam esperar o nunca. Ela batia nas costas dele: — Você ouviu? ouviu, querido, o que eu acabei de dizer? então o que foi? Repita o que eu disse. — Ou então: — Pare de ler, que dessa forma você vai acabar morrendo. — Ou ainda: — Você não se cansa disso? Fica escrevendo porcarias que não lhe servirão de nada na vida. Procure um emprego que lhe garanta alguma dignidade futura. Você só se mistura com gente da pior laia, meu querido. — Mas Felipe a amava e não possuía forças para se opor ao que ela, naquela voracidade de louca, dizia. Ficava mudo e às vezes, enquanto ela dormia, fingia estar sozinho em casa. Mas era certo que ele também não era tão ajuizado, principalmente quando visualizava tudo, desmembrando os atos em arrumações de palavras que rodopiavam em sua mente. Era como se ele estivesse dentro dum romance que ele próprio escreviasem prever o próximo parágrafo. Ele nunca antecipava. Até mesmo quando se lançava ao trabalho de escrever, mesmo sobre a avidez e a loucura, ele não sabia bem como conjecturar a frase seguinte, e tudo saía numa espécie de mistério para ele mesmo. E assim, vivia, de susto em susto. De não em não. Nunca chagando a ser, como a mãe desejava, alguém na vida.

Deixou a mãe na sala sobre os protestos de “você nem serve para me trazer um médico, sendo que eu estou quase morrendo”, e foi se deitar. A cabeça muito pesada, como se um enxame de abelhas mudas estivesse dentro dele, esperando o momento de zunirem, todas duma única vez. Levantou-se. Pegou um livro. Leu-lhe o título: A vida de Mrs Parker. Não leu o nome do autor, mas supôs que fosse inglês. Deitou-se de novo e, mesmo deitado, respirando com os lábios enegrecidos, acendeu um cigarro. Fumava olhando o teto que parecia engoli-lo com mandíbulas duma salamandra gigantesca. E se ele se levantasse para procurar um emprego? Lecionar, por exemplo, lhe parecia boa coisa. Sabia Felipe que o emprego de professor lhe agradaria, desde que tinha jeito e paciência para transmitir certas coisas. Mas a verdade é que Felipe não queria transmitir nada a ninguém, nem a ele próprio. Ele queria o silêncio e a escuridão como formas de ensino a si mesmo. Ele estava aprendendo? Sim, ele estava aprendendo. Calado, ele aprendia. Seus pensamentos eram verdadeiros ensinamentos, embora transmiti-los seria tarefa difícil... e... catastrófica. Ele não ensinaria corretamente e estaria sujeito à forca.

Ouviu a mãe chamando seu nome, não atendeu. Ela acharia que ele tivesse adormecido. Esperou por um momento e vendo que a voz da mãe não retornaria, fechou os olhos porque tudo rodava naquela claridade desmaiada da tarde. E só agora percebera que a cama estava um pouco dura e seus ossos, à altura das nádegas, doíam um pouco. Virou-se, não encontrava lugar satisfatório. Não podia, de modo algum, ter perdido o emprego no departamento de comunicação. Este emprego, que não era em si um emprego, mas um estágio remunerado, assegurava-lhe algumas regalias que ele agora não possuía mais. Ele tinha dívidas e precisava pagá-las o mais cedo quanto possível. Pegou sobre a mesa um envelope; tirou de dentro dele uma correspondência que dizia: “Caro Felipe, Até o momento, não foram encontrados em nossos registros os pagamentos referentes aos débitos abaixo relacionadas ao fundo de formatura. Segundo o estatuto responsável por sua gestão é ‘obrigação dos associados pagar, pontualmente, as mensalidades do fundo’. Baseados nesses princípios é que pedimos a gentileza de entrar em contato conosco por telefone, para que possamos negociar as parcelas em atraso”. Felipe reparou que na orla do papel havia o número telefônico, e mais acima a exposição dum quadro que mostrava exatamente os meses que ele deixou de pagar: junho, julho, agosto e setembro. Pôs a correspondência de lado e procurou pensar noutra coisa. A mãe jamais poderia saber dessas dívidas; ela não o compreenderia. Arregalou os olhos e, através do vidro da janela, viu as pessoas circulando lá embaixo, umas ao lado das outras. Era tudo muito engraçado. Decidiu que não participaria da festa de formatura, já que ninguém de sua turma de estudo faria questão de sua presença. A essas pessoas ele era uma espécie de louco, e só dois ou três o tratava com admiração. Desses três, um deles tinha Felipe como um irresponsável, uma criança a quem os passos deveriam ser vistoriados, o que deixava Felipe irritado e desarmado. Há muito não ia à universidade. Neste período, os estudantes concluíam seus trabalhos de término do curso em casa. Mas ele, em suas análises, não conseguia passar do capítulo primeiro. Ele estava ocupado demais em sua vadiação, cujos âmbitos circulavam em torno de uma suposta vivência para a arte, ou de forma geral, para um sentimento que ele denominava “alta percepção”. Falar com a mãe era impossível. Compreender era impossível. Restava-lhe apenas aceitar. Mas aceitar o quê? Tudo era um “não”.

Esse “não”, que antes Felipe recebia com brandura, agora o arranhava como as garras duma gaivota branca, mas cheia de ódio. Ele mexera no ninho da gaivota? Ele estava um pouco assustado, pois se mexera no ninho duma gaivota era porque sua inteligência falhara. Nunca se mexe em ninhos tresloucados de ramas. Principalmente quando esses ninhos pertencem às gaivotas brancas, que ele nunca vira de perto, pois não morava no litoral e não era, como se podia dizer, viajado. Já as pombas ele as via a todo momento e não gostava delas.

Retornar de uma loucura? Parou, pôs os pensamentos em ordem, amanhã seria domingo. Estaria mais preparado para qualquer coisa.

— Felipe. — disse a mãe batendo à porta. — Abra, Felipe!
— Que é? — ele respondeu sem coragem.
— Abra logo.

Ela forçava a porta, tentado arrombá-la.

— Que foi?! — impacientou-se o moço saindo do quarto subitamente.

Maria, pálida e de lábios quase pretos, deu ao filho um bilhete que dizia: “Convido os moradores deste edifício para uma comemoração em meu apartamento, de nº 302, a fim de estreitarmos nossos laços, amanhã, às 21:30, sem pretextos. Com respeito e esperando suas presenças...” Felipe leu embaixo a assinatura da Gil Fedrosa e cerrou o bilhete. Fazia, acima de tudo, um calor de verão.






Aos poucos os convidados foram chegando. Primeiro Frância num vestido assustadoramente rubro que pedira emprestado à Ângela, sua amiga. Depois, os Algrave segurando as filhas, Jane e Geórgia, pelas mãos. — Como estão crescidas! — disse uma voz frouxa vinda da ante-sala. E, por fim, Felipe com sua mãe agarrada ao braço direito para que ele não a deixasse tropeçar no tapete fofo, que de tão vermelho, chamejava como fogo.

A galinha, sobre a mesa, parecia jamais ter tido vida. Sem a cabeça, com as patas juntas e com enfeites coloridos, à volta. Mais alimentos se estendiam ao relento, tantos que era impossível descrevê-los.

Fosse calor ou frio o que fazia, decerto ninguém notava. Estavam todos estirados. À mesa, especialmente, eles. Em pratos caros, ao lado do arroz invisível de tão branco, lívidos e sem culpa. E tentavam uma concatenação impossível, porém inteiramente desatenta, porque eles nem se conheciam. Seus olhos eram olhos de estranhos desconfiados, de sobrolho erguido, esperando o ataque, prevendo qualquer golpe. Eles, sem ausentar nenhum, eram os golpistas. Até mesmo as crianças odiavam e, maléficas, mostravam língua para os mais estranhos. Impossível saber quais eram os mais estranhos? Jane e Geórgia estavam assustadas; elas não se encontravam. Queriam fugir para brincar com os pombos lá fora, correndo no infinito dum jardim, de braços abertos, livres. Pois caía um tal silêncio torturante como uma onda suspensa e fora de movimento.

— Mamãe! — Geórgia pediu socorro, mas a mãe não a escutou. Ou Fátima Algrave queria mostrar como se vivia? Ela continuou imóvel olhando para o marido que comia em silêncio, de cabeça retrocedida, de olhos pouco abertos, seu maxilar em movimento eqüino. Jane não pedia socorro, divertia-se e dava risadinhas abafadas quando algum olhar desatinado caía sobre ela. No entanto, estava cansada. Onde estavam as bonecas e os doces? Aquela mulher, de vestido escuro, não era bonita como uma boneca. E aquele moço parecia coisa estragada, pensava Jane enquanto olhava Felipe fazer bolinhas com o miolo do pão.

A mesa, em resposta a tudo, se doava. Já eles se doavam em pior espécie: a dos animais que comem sem agradecer. Agradecer a presença um do outro, era demais! Suportar era uma dor longa como a própria mesa que engasgava o cômodo.

Percebendo que ainda não haviam se apresentado, todos se ergueram. A princípio Arthur, entalado pela farofa.

— Meu nome é Arthur Algrave.

E assim sucessivamente, até que chegou a vez de Jane e Geórgia, e por elas, respondeu Fátima Algrave: — Estas são nossas filhas, Jane e Geórgia Algrave. — As meninas sorriram e as covinhas afundaram dentre as sardas.

De fato, eles mereciam a mesa como mereciam uns aos outros, por serem estrangeiros. Nisto eram idênticos: os que inexistiam lado a lado, que subiam cuidadosamente as escadas do edifício para não serem pegos de surpresa, vivendo. As sacolas de compras fazendo ruídos baixos, um “piiss...” no ar, como faziam os Algrave para conterem as filhas. Os passos sorrateiros evitando que fossem surpreendidos. Entretanto, o mais importante, era que eles se esquivassem da sentença. De certo modo, já estavam sendo culpados e um juiz, que poderia ser Gil Fedrosa, a anfitriã e bússola daquela plêiade de ignorados, sofreria muito mais num futuro próximo. Ela já beijava o erro que cometera, e buscava uma resignação fora de alcance. Resignada, não mais pecaria. Ela tinha tempo e espaço inacabados. Daí que, ver-se transmutada na figura de Felipe era um ato de idiotice, pois ele se parecia muito com Alex e com Frância; e se parecia com Geórgia, não Jaine. Ele, esse petulante, não era nada. Estava seco como uma nódoa antiga. Parado, com aqueles óculos que nunca tirava da cara. O artista. Qual inteligência lhe atribuir? Evidentemente nenhuma. Ele estava indiferente, mas todos estavam também. Cada qual em busca duma adivinhação que, indubitavelmente, era o ato maior de vida própria. Eles existiam de forma única, sem interesses. Interessavam-se pela comida até certo ponto, porque depois os alimentos foram tomando sabor de água gaseificada. Uma água de gosto variado, porque sorvera odores da comida estragada na geladeira. E deixaram completamente os alimentos. Quando em quando, alguém punha uma azeitona na boca e, por medo, engolia o caroço, ofuscando os olhos, porque a garganta estava sendo obstruída e iniciada. Palavra? Que dizer? Não havia nada para ser dito que os ancestrais não disseram no passado. No silêncio a ordem era mantida, pois se alguém quisesse dizer qualquer coisa saberia levantar a mão e pedir licença. Tensos, os lábios apertados, eles não tinham coragem de arruinar tudo com palavras desnecessárias. Os pés debaixo da mesa jamais se tocavam. Os corações estavam atordoados.

Gil se levantou, pegou o vinho e o serviu. Eles degustaram quietos, com exceção das crianças que protestaram. Jane queria vinho a qualquer custo. Então, um dos Algrave molhou-lhe a boca e ela pôde bebericar um pouquinho, mas tão pouco que não pôde sentir um gosto longínquo de maçã. Era possível?, indagava Felipe a si mesmo, esperando alguma coisa que nunca aconteceria.

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